Com a comemoração pelo Dia das Mães, uma inquietação assombra meus dias e duas perguntas que não querem calar, me instigam a questionar o que é ser mãe e quais mães são lembradas nesta data. Em sentido amplo, a data se volta para a homenagem daquelas que, em primeiro lugar, conseguiram parir, seguido daquelas que foram ou são responsáveis pela criação de alguém. No entanto, o sentido da maternagem é muito mais profundo do que questões de ordem física ou que contemple apenas o feminino.
As questões iniciais me lembram que, de forma geral, mães pretas, indígenas, trans, aquelas em privação de liberdade, as arrependidas pela gravidez, as que consomem substâncias psicoativas na gestação ou na amamentação, as “solos”, não são as referidas e homenageadas. Parece que o dia das mães não engloba a diversidade das maternidades e, muito menos, se atenta ao processo de que, o cuidar e potencializar nossas crias, é responsabilidade de toda a comunidade.
Essas inquietações me levaram a fazer uma viagem de reconhecimento de mim mesma, especialmente, do modo como tenho exercido a maternidade. O que, por sua vez, me induziu a uma outra constatação: uma viagem por nós mesmos não é algo fácil ou cômodo. É uma travessia no plano da alma que rasga o peito, mas que a longo prazo, fortalece o caminhar. Essa viagem nem sempre é segura ou alentosa. Muitas vezes, nos produz o reconhecimento de erros, esquecimentos e saudades de tempos que não voltam mais. Traz memórias, provoca rupturas e atesta permanências.
Quando essa viagem é impetrada por uma mulher negra, toda uma gama de história envolvendo o Atlântico, o tráfico, a destruição de vidas e culturas, necessariamente se apresenta, produzindo as dores próprias de uma pessoa que é cria de uma sociedade que se estrutura no racismo, na misoginia, no classicismo e em outras variáveis que nos inviabiliza e nos violenta.
Apesar da história do povo negro não ter iniciado com a colonização/escravização, ela foi perversamente afetada pelo projeto de supremacia articulado e impetrado pela branquitude. Isso significa dizer que toda a minha história e da minha família, anterior e posterior à minha existência, é afetada pela tragédia do tráfico de pessoas via Atlântico, em um dos mais profundos crimes produzido pela humanidade.
A consciência de que a minha história é atravessada pelas dores do racismo e que, de fato, apesar das minhas condições socioeconômicas, meu corpo carrega a marca da negritude, me conduz a pensar as maneiras como a minha existência como mulher negra, mãe de uma menina oriunda de uma relação interétnica pode ser mecanismo para potencializar meninas e meninos negros e periféricos a depender de como conduzo meus passos e gesto potências.
Isso tudo, porque entendo a maternagem para além do cordão umbilical. Gestar pessoas e comunidades é próprio de uma perspectiva africana de sociedade. Penso que um dos mecanismos que posso utilizar para exercer a maternagem para além da minha filha biológica (Júlia Menegon), é a tática das escrevivências de Conceição Evaristo, deixar as memórias firmadas, enquanto mãe africana em diáspora, vivida no Brasil, essa sociedade transatlântica. Uma sociedade Amefricana.
(…) enquanto amefricanos, temos nossas contribuições específicas para o mundo panafricano. Assumindo nossa Amefricanidade, podemos ultrapassar uma visão idealizada, imaginária ou mitificada da África e, ao mesmo tempo, voltar nosso olhar para a realidade em que vivem todos os amefricanos do continente. (…) Num momento em que se estreitam as relações entre os descendentes de africanos em todo o continente, em que nós, amefricanos, mais do que nunca, constatamos as grandes similaridades que nos unem, a proposta de M.K.Asante me parece da maior atualidade. Sobretudo se pensarmos naqueles que, hoje, nós possamos levar adiante o que eles iniciaram. Daí a minha insistência com relação à categoria de Amefricanidade, que floresceu e se estruturou no decorrer dos séculos que marcaram a nossa presença no continente. (González, 1988, p. 78-79).
No exercício da maternagem, busco atuar a partir da perspectiva do meu povo e essa andança produz em mim e nos meus a compreensão de que nossa história vem de longe, que homens negros não são meus inimigos, que o racismo atinge de forma nefasta a toda a população negra e indígena. Preciso estar sempre atenta ao fato de que crianças e jovens negros necessitam de uma rede de apoio e que a definição de nós por nós mesmos faz parte de um cronograma para a liberdade como enfatizaram Kwame Ture e Charles V. Hamilton (2021).
Nesse sentido, muito me encanta o estudo de Oyèrónké Oyěwùmí. Ao se propor estudar sobre gênero em sociedades iorubás, ela defende que o conceito de mulher é uma invenção do ocidente. Entre comunidades africanas, como as desse povo, as diferenças entre pessoas são estabelecidas a partir da perspectiva da senioridade e, não por diferenças biológicas, sendo a hierarquia social estabelecida a partir da idade e não baseada em diferenças de gênero.
Nessa cosmopercepção – conceito cunhado por Oyèrónké Oyěwùmí em contraposicão à cosmovisão – essas sociedades entendem que o feminino está em todas as pessoas e a força criadora de seres humanos não possui gênero. Nessa perspectiva, mulheres e homens gestam pessoas. São, portanto, matrigestores.
Na chamada iorubalândia, território cultural que compreende parte da Nigéria, de Tongo e do Benin, a figura da categoria espiritual Iÿas (que foi traduzida do inglês como “mãe”), não se atrela a gênero e nem se sujeita a ser representada a partir da ideia de binaridade tão presente na cultura ocidental.
Na caminhada por mim mesma, ter conhecimento e me aprofundar sobre epistemologias do Sul é um processo em constante construção e alinhamento. Quanto mais me aprofundo, mais reconheço a mim mesma e à minha comunidade, mais compreendo que nós precisamos nos definir por nós mesmos e compreender os papéis que desempenhamos na sociedade.
Ao mergulhar em filosofias, saberes e ritmos do além-mar, mais compreendo o quanto nos lesaram, usurparam, até tomarem muitas das nossas almas. Ao longo do processo de epistemicídio a que nos submeteram, perdemos além de vidas, nos perdemos de nós mesmos e passamos a adotar valores, éticas, estéticas que não são nossas. E ao tempo em que isso tudo ocorria, sempre tinha alguém entre nós, que utilizava estratégias de re-existência para manter viva a chama da mãe África. Nós, mulheres negras, tão taxadas de arrogantes, briguentas, barraqueiras quando nos impomos e não concordamos com determinadas opiniões ou situações, fomos aquelas que encontraram meios de permanecer e servir de apoio às nossas comunidades: gestando, cuidando, motivando, alimentando.
Mães africanas em sua diversidade abrem caminhos, potencializam, circulam e se movem, ao tempo em que também potencializam sua comunidade. Quando uma africana em sua diversidade se desloca e se apresenta, todo seu quilombo é movido por ela. Somos ainda capazes de vivenciar dores que nos unem e que tem na supremacia branca a base da sua existência.
Nessa viagem para dentro de mim mesma, criou raízes a certeza de que quando uma mãe africana se levanta, outras entoam: “eu me levanto, eu me levanto, eu me levanto” (Maya Angelou), enquanto outras gritam: “acaso não serei eu uma mulher?” (Sojourner Truth). Ao longo da história, mães africanas em sua diversidade – da cozinha à academia – sempre revolucionaram e revolucionam a si mesmas e seus territórios.
Essas mães acreditam em poder compartilhado. Lembrem-se do exemplo de Tereza de Benguela – consolidou um parlamento no quilombo em que exercia a liderança em pleno período escravocrata no Brasil. Mães como Tereza têm medo e repudiam o endeusamento. Por isso, quando recebo um elogio ou um carinho, me pergunto se sou merecedora e intimamente me alerto para o fato de que eu sou uma pessoa e que posso decepcionar.
A maternagem, portanto, deve ser vivenciada por toda a comunidade, afinal, existe o feminino no masculino e masculino no feminino. O relevante é que cuidemos uns dos outros. De acordo com Sobonfu Somé (2003, p. 42 e 43), entre os povos Dagaras:
Quando você tem um filho, por exemplo, não é só seu, é filho da comunidade. Do nascimento em diante, a mãe não é a única responsável pela criança. Qualquer outra pessoa pode alimentar e cuidar da criança. Se outra mulher tiver um bebê, ela pode dar de mamar a qualquer criança. Não há o menor problema. Algumas vezes quando uma mãe quer ver seu filho, ela não consegue porque muitas pessoas estão cuidando dele. Lembro-me de que costumava pregar uma peça nas minhas irmãs. Eu pegava seus filhos e desaparecia com eles por um bom tempo. Minhas irmãs ficavam pensando onde estariam seus filhos,mas sabiam que estavam seguros.
É essa ideia de valorização da criação e do cuidado com as crianças que pertencem à comunidade que quero trazer aqui: o primeiro passo para a valorização de mães, é criar uma rede de apoio que esteja presente de forma contínua, que a maternidade não seja romantizada ou que seja encarada como uma função puramente das mulheres. É relevante que a data não sirva meramente ao lucro do capital, mas sirva para que reconheçamos como o trabalho de maternar deve ser realizado por todas as pessoas. Que maternar independe do sexo biológico.
Essa viagem incessante por mim mesma me fez compreender que me fortaleço porque tenho pessoas que se preocupam comigo, que me acolhem, que me cuidam, que protegem minha Júlia, o que me permite ser mãe de muitas outras pessoas que estão sendo gestadas. Por conta da minha comunidade, eu posso desenvolver a esculta de adolescentes negros e periféricos, meninas e meninos homoafetivos que não têm acolhida entre os seus. Isso é maternar. Isso é exercer a maternidade em seu sentido mais profundo: amar quem não saiu do seu corpo e potencializar vidas.
Feliz maternar para cada pessoa que fizer a leitura deste texto.
REFERÊNCIAS
GONZALES, Lélia. A categoria político-cultural da amefricanidade. In: Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro, nº 92/93, 1988.
OYĚWÙMÍ, Oyèrónkẹ́. A invenção das mulheres: construindo um sentido africano para os discursos ocidentais de gênero. Tradução Wanderson Flor do Nascimento. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021.
SOMÉ, Sobonfu. O espírito da Intimidade, Ensinamentos Ancestrais Africanos sobre maneiras de se relacionar. São Paulo: Odysseus, 2007.
Ture, Kwame e HAMILTON, Charles V. Black Power: a política de libertação dos Estados Unidos. São Paulo: Jundaíra, 2021.