Apresentação
O presente ensaio foi elaborado no intuito de participar como conferencista de um momento formativo com professores e servidores do Instituto Federal do Ceará – campus Canindé, em janeiro de 2024, por meio de videoconferência. Esse momento é relevante porque janeiro é o mês que marca os 21 anos da Lei n. 10.639 de 2003, que torna obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana em todas as escolas. O objetivo do texto é fazer uma breve análise de como a legislação sobre a Educação para as Relações Etnico-Raciais estão sendo implementadas no Brasil, bem como, provocar questionamentos sobre os papéis das instituições de educação, sejam da educação básica ou do ensino superior, na execução das ações previstas nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Etnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, mais tarde acrescidas da História Indígena através da Lei n. 11.645/2008.
A ideia, também, é elencar algumas formas de prevenção e mediação em situações que envolvem racismo, além de explanar, brevemente, o papel da família nas situações que envolvem preconceito e discriminação às pessoas negras, segundo a definição do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, pessoas pretas e pardas. É necessário acrescentarmos a discussão sobre o modo de ser e de viver das diversas comunidades que compõem os povos originários do Brasil, também, vítimas do racismo sistêmico.
Diante de qualquer discussão sobre a legislação que trata sobre a educação para as relações étnico-raciais no Brasil, é impossível deixar de considerar que sua praticabilidade carece ainda de enorme esforço e está longe de ser plenamente desenvolvida, além de ser alvo constante de boicotes de todos os tipos, fruto do racismo estrutural e institucional. Outro ponto relevante diz respeito ao fato de não fazer a discussão sem considerar variáveis como: gênero, sexualidade, ser pessoa com ou sem deficiência, classe social, professar alguma religião de matriz africana ou afro-indígena, entre outras, aspectos estes que operam de forma interseccional e agravam ainda mais o racismo.
Espaços educacionais costumam evidenciar as marcas dessa realidade, sendo instituições que, a depender das narrativas dominantes, perpetuam o racismo, sendo muitas vezes o espaço do primeiro contato com o preconceito e a discrimanção baseados no tipo físico ou por expressões culturais não hegemônicas. Não à toa, na Pesquisa Percepções sobre o racismo no Brasil (PEREGUM, 2023), 64% das pessoas jovens de 16 a 24 anos afirmaram ter sofrido racismo na escola.
Não podemos esquecer que:
Estamos num país onde coisas graves e importantes se praticam sem discurso, em silêncio para não chamar a atenção e não desencadear um processo de conscientização, ao contrário do que aconteceu nos países de racismo aberto. O silêncio, o implícito, a sutileza, o velado, o paternalismo são alguns aspectos dessa ideologia (Kabengele Munanga, 1996, p. 220-221).
Isso significa dizer que o racismo não se apresenta apenas em falas discriminatórias (ouso dizer que essas manifestações são apenas a ponta do iceberg), mas através de dispositivos que se conectam através de um pacto não verbal e não oficial impetrado pela branquitude (Carneiro, 2023; Bento, 2022) e que se baseia na ideia de superioridade racial de pessoas com brancura. É preciso entender como esses dispositivos operam. De acordo com Sueli Carneiro (2023) “O dispositivo de racialidade, ao demarcar a humanidade como sinônimo de brancura, irá redefinir as demais dimensões humanas e hierarquizá-las de acordo com a proximidade ou o distanciamento desse padrão”.
Um exemplo bem recente do modo como esse dispositivo opera está ocorrendo agora na Edição 24 do reality show Big Brother Brasil (BBB), onde a participante Vanessa Lopes apresentou diversos momentos de agressividade diante dos demais irmãos e irmãs confinados, e teve as atitudes justificadas porque é “uma menina” que está passando por dificuldades. Independente do fato dela sofrer de algum problema de saúde mental, no geral pessoas brancas têm mais possibilidade de serem perdoadas do que pessoas negras. Vejam o caso do participante Luigi, um homem preto (retinto), favelado, que incomoda a casa por conta do seu jeito de ser e se expressar. Do mesmo modo, o participante Davi, homem negro de 21 anos, apesar de ter uma postura de auxílio aos demais irmãos e irmãs confinados, prepando comida, é absurdamente criticado, inclusive por Vanessa Camargo, mulher branca que não sabe preparar a própria alimentação. No geral, homens negros são adultizados desde a infância, enquanto homens e mulheres brancos parecem permanecer em um eterno looping de infantilidade para ter suas atitudes justificadas. Será que nós também não reproduzimos esse tipo de comportamento nas instituições educacionais?
De acordo com Isildinha Baptista Nogueira (1998),
A “brancura” passa a ser parâmetro de pureza artística, nobreza estética, majestade moral, sabedoria científica etc. Assim, o branco encarna todas as virtudes, a manifestação da razão, do espírito e das ideias: “eles são a cultura, a civilização, em uma palavra, a humanidade”.
A fala de Isildinha serve para que possamos analisar nossas práticas no campo educacional. Pensarmos sobre os resultados em avaliações, o material didático que utilizamos, quais estudantes recebem as maiores manifestações de carinho e atenção e também o seu oposto. Pensar sobre abandono, reprovação. Avaliarmos os conteúdos trabalhados e o modo como eles são reproduzidos, afinal, a escola é o mecanismo oficial de produção e reprodução do conhecimento produzido pela humanidade.
A ampliação do número de casos de assassinatos de negros e quilombolas e os ataques a terreiros é evidência da base racial da sociedade brasileira. Os dados disponibilizados pelas Secretarias de Seguranças dos estados apontaram que, no ano de 2022, das 4.219 vítimas decorrentes da intervenção do Estado, 65,66% eram pessoas negras, o que representa um total de 2.770. Bahia seguida do Rio de Janeiro são os estados que mais matam negros a partir da ação policial. No que se refere à população quilombola, o Maranhão é o estado com mais casos de assassinatos: 09 (Rede de Observatórios da Segurança, 2023). Essa realidade aponta que a população negra brasileira vive sob o signo da morte, o que significa dizer que “(…) o racismo é indispensável como condição para poder tirar a vida de alguém, para poder tirar a vida dos outros, a função assassina do Estado só pode ser assegurada desde que o Estado funcione, no modo do biopoder, pelo racismo” (Foucault, 2015, p. 306). Lembrando que o racismo sempre se alimenta em relação ao outro. Para Toni Morrison, é o processo de outremização, a eliminação ou inferiorização do outro em relação ao eu.
O conceito de dispositivos de racialidade desenvolvidos por Sueli Carneiro (2014) é um excelente elemento que pode nos auxiliar a compreender como o racismo opera no Brasil. Trata-se, portanto, de “[…] um contrato racial que sela um acordo de exclusão e/ou subalternização dos negros, no qual o epistemicídio cumpre função estratégica em conexão com a tecnologia do biopoder”.
Sankofa – Para pensar uma educação para as relações étnico-raciais
“É preciso olhar para trás e pegar”. É necessário voltar ao passado, observar os erros cometidos, analisar o presente com sabedoria para podermos projetar o futuro. Esse é o significado trazido pelo pássaro de duas cabeças que o Sankofa representa. Símbolo encontrado entre os povos de língua akan da África Ocidental, em Gana, Togo e Costa do Marfim. É necessário saber como funcionam os dispositivos de racialidade e como o racismo opera a partir de diferentes frentes.
Ao fazer 21 anos de existência da Lei n. 10.639/2003, muito se tem a dizer sobre o que não foi feito para a sua efetivação. No geral, as escolas e instituições de ensino superior permanecem relegando sua aplicabilidade apenas às ações do mês de novembro. O que se observa, efetivamente, é a realização de ações pontuais, material didático que traz conteúdos simplistas sobre a história afro-brasileira e africana. Nos cursos superiores, bibliografias dos Projetos Pedagógicos com raras ou nenhuma referência africana ou afro-diaspórica. Nós precisamos analisar os dados que estão disponíveis sobre a educação. Por exemplo, o último censo, apenas 24,1% dos professores universitários são negros. De acordo com a PNAD (2022), entre os que completam o ensino superior: 1 a cada 11 é negro. 1 a cada cinco são brancos.
As universidades e os institutos federais têm um papel importante na busca por soluções que proponham as mudanças necessárias no que se refere à estrutura racial do Brasil. Isso envolve uma reavaliação das nossas práticas e a reestruturação desses territórios. É urgente uma mudança de postura e de prioridades que perpassa pelo letramento racial de cada um de nós. O Letramento Racial é um mecanismo relevante para que tenhamos consciência de quem nós somos, qual nosso papel na sociedade. Como eu me vejo, como eu sou percebido pela sociedade. Pessoas brancas têm um papel fundamental nesse processo ao reconhecer seus privilégios em primeiro lugar.
É urgente pensarmos formas de como lidar com a diversidade dos nossos estudantes, nesse sentido, retomamos aqui um questionamento anterior:
O questionamento que fica é: que tipo de profissional está sendo formado nas academias? É preciso que as instituições que formam os profissionais da educação evidem esforços em colocar em prática ações que considerem as demandas da população negra, assim como inserir em seus currículos tanto a história quanto a cultura afro-brasileira, africana e indígena, mas também que valorize pensadores negros, negras e de povos tradicionais (MENEGON, OLIVEIRA e DOURADO, 2023)
Recomenda-se no caso do ensino superior, de forma urgente: 1. promover a reformulação das matrizes curriculares dos cursos de licenciatura e também bacharelado que, em sua maioria, baseiam-se, atualmente, em epistemologias colonialistas; 2. produzir material didático que esteja ancorado na realidade das comunidades brasileiras, levando em consideração territórios e histórias, a partir de uma referência intelectual africana, afro-brasileira e afro-ameríndia; 3. promoção de formação permanente afro-indígena-referenciadas para os profissionais da educação; 4. realização de ações voltadas para o letramento racial crítico para a construção de consciência racial; 5. construção de calendários escolares e acadêmicos antirracistas, inserindo datas relevantes para a comunidade não-branca. Nossos calendários permanecem brancocêntricos/eurocêntrico; 6. Realização de censo étnico-racial entre profissionais da educação e estudantes; 7. realizar pesquisas acerca da percepção sobre racismo e a legislação para as relações etnico-raciais com esse mesmo público; 8. estimular as famílias a participarem ativamente do trabalho desenvolvido nas instituições educacionais e se reconhecerem como partícipe do processo educacional; 9. criação de comissões de acompanhamento aos casos de racismo e discriminação nos espaçoseducacionais; 10. planejar aulas de modo que não apenas a perpectiva eurocêntrica esteja presente, mas buscar a origem dos conhecimentos de cada área e valorizar a história dos povos africanos do continente e da diáspora, bem como os povos ameríndios. Importante lembrar que essas não são as únicas ações que precisam ser realizadas, mas um começo.
À guisa de conclusão, defendemos que estas e outras ações são extremamente necessárias para iniciarmos o processo de instituições educacionais antirracistas. Precisamos, de modo urgente, repensar os valores que alicerçam nossas práticas e perceber que as comunidades em que nossos espaços educacionais estão inseridos possuem história e que devem ser valorizadas. Finalizo esse ensaio com a profecia do grande mestre Nêgo Bispo: “Nós somos começo, meio e começo”. Do mesmo modo em que já estamos cansados de falar de nós perdendo, “é preciso falar de nós ganhando, porque de nós perdendo, eles já falam”.
Motumbá Axé!
REFERÊNCIAS
BENTO, Cida. O pacto da branquitude. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.
CARNEIRO, Sueli. Dispositivo de racialidade: a construção do outro como não ser como fundamento do ser. Rio de Janeiro, 2023.
CARNEIRO, Sueli. Epistemicídio. In Portal Geledés. Postado em 04 de setembro de 2014. Disponível em: Epistemicídio (geledes.org.br). Acesso em 19 jan 2024.
FOCAULT, Michel. Em Defesa da Sociedade: Curso no Collège de France (1975-1976). Tradução: Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
MUNANGA, Kangebele. As facetas de um racismo silencioso. In; SCHWARCZ, Lilia Moritz. & QUEIROS, Renato da Silva. (Orgs). Raça e diversidade. São Paulo: Edusp, 1996.p.220-221.
REDE DE OBSERVATÓRIOS DA SEGURANÇA. Pele alvo: a bala não erra o negro. Rio de Janeiro : CESeC, 2023.
MENEGON, Valdenia Guimarães e Silva, OLIVEIRA, Sâmia Valéria Nascimento de e DOURADO, Geyciele Quezia Silva. No movimento também tem educação: perspectivas emancipatórias da luta antirracista. Revista Educação e Emancipação. Disponível em: Vista do No movimento também tem educação (ufma.br). Acesso em: 19 jan. 2024.
NGANGA, João Gabriel do Nascimento. Pesquisa Percepções sobre racismo no Brasil. São Paulo: PEREGUM – Instituto de Referência Negra e Projeto SETA – Sistema de Educação por uma Transformação Antirracista, 2023.
NOGUEIRA, B. Isildinha. Significações do corpo negro, ipusp-usp, 1998, São Paulo. (Doutorado em Psicologia Escolar e Desenvolvimento Humano). Disponível em: ReP USP – Detalhe do registro: Significações do corpo negro. Acesso em: 19 jan. 2024.