ENVIADO POR / FONTE

Quezia Dourado

21/04/2023

A COZINHA DE AXÉ

o que as relações estabelecidas nesse espaço de terreiro tem a dizer?

O foco desta produção está em analisar os processos que acontecem dentro das cozinhas dos terreiros e compreender o que está para além dos atos de fazer o alimento, servi-lo e comê-lo. A ideia se orienta em saber que a alimentação humana é muito mais que simplesmente uma necessidade biológica, existe significado e simbologia por trás de cada passo executado. Partindo de uma interpretação ocidentalizada, para em ato contínuo direcionarmos o olhar, se baseando na filosofia africana e na ética diaspórica de terreiro. 

 

O comum da sociedade é, de alguma maneira, entender a cozinha como um ambiente de trabalho, geralmente ocupado pelo gênero feminimo, que é responsável por manter a ordem e dedicar-se à produção dos alimentos. Muitas vezes, cozinhar é sinônimo de exaustão, servidão e obrigação. Como tudo no mundo, essa é uma  ideia socialmente construída. 

 

Quando se refere à cozinha, é possível enveredar por vários caminhos, mas, automaticamente, somos levados a tratar da culinária, que pode ser entendida como um punhado de técnicas e habilidades que possibilitam a produção de alimentos. Nessa interpretação, situamos o Brasil e a configuração de sua culinária que muito tem a dizer. 

 

A cozinha brasileira é originalmente indígena  e africana. Constatamos isso quando nos atentamos aos detalhes do processo de colonização do país. No período da escravidão, a cozinha era um dos locais onde as mulheres africanas, sequestradas de seu continente,  eram exploradas, e tinham como obrigação preparar os alimentos e servi-los aos senhores de engenho.  O preparo dos pratos ocorria numa confluência dos ingredientes cultivados pelos nativos e dos saberes e costumes africanos. Logo depois, contaram com a  presença de mulheres brancas no ambiente que ordenaram suas incrementações para adequação do sabor de acordo com a cultura europeia. 

 

No século XX, o movimento da elite brasileira buscava produzir um novo perfil para a cozinha do país, que ficasse evidente as diferenças entre a gastronomia e a culinária. A gastronomia era elevada ao nível “elite” dos estudantes, intelectuais e artistas, podendo ser inscrita dentro do “um conjunto de regras, que presidem a cultura e a educação do bom gosto”(Bourdieu, 2007,  p. 66), sob o domínio de homens brancos. 

Enquanto a culinária era classificada ao ambiente doméstico, das empregadas e donas de casa pobres, sem formação e que produziam alimentos sem “técnicas”, sem “etiquetas” requintadas da classe alta. Estrategicamente, era negada como expressão cultural e  colocada no centro das discussões sanitaristas, que a todo custo queriam “esterilizar” os pratos brasileiros. (Aguiar, 2014, p. 82)

 

Por isso, os projetos de cozinha dos restaurantes das grandes metrópoles passaram por um processo de “estilização”, proposto por Paulo Duarte, homem político com forte ligação com a cultura francesa. O sabor era dosado e aceito de acordo com o paladar dos chefes estrangeiros, mas, esteticamente, os pratos brasileiros não eram atraentes e certamente não passavam no julgamento “refinado” do paladar europeu. Era necessário uma reformulação visual.

 

A famosa “cozinha colonial” da atualidade não é um traço somente da arquitetura, que nos projetos é a cozinha que funciona, que é organizada, otimizada e desejada por seus parâmetros exatos, além disso, é acolhedora e possibilita socialização. Um pouco irônico, pois, ao que já sabemos, nada disso existiu no período colonial, o ambiente era composto exclusivamente de africanas escravizadas. O que chegava próximo de aconchego e família era a memória dessas mulheres que se mantinham vivas. Nota-se, então,  uma glorificação do belo e moderno que romantiza a colonização brasileira, que se acomoda conscientemente na sociedade e dispõe não apenas de estrutura e ambiente, mas em todo o processo interno, de produção, do que é consumível, do que é apresentável e agradável ao paladar. 

 

Há tempos se discute a travessia do oceano Atlântico e a formação da diáspora negra no Brasil. Dentro desse debate, é uníssono que este movimento foi violento e forçado,  porém uma discussão igualmente relevante,  é se atentar para as estratégias de resistência que foram concebidas por africanos e africanas para preservar suas raízes culturais e saberes ancestrais.

 

Os saberes ancestrais não foram arquivados apenas na mente, mas principalmente no coração, que para os povos africanos, é a morada da consciência. Até o presente momento, se mantêm vivos os valores e modos de organização de comunidade herdados de África (Pontes, 2022, p. 22)

 

No ocidente, por mais que existam diversos movimentos que se organizam por causas com propósitos de tentativa de harmonização do ser humano com todas as outras formas de vida, ainda vivenciamos um forte desequilíbrio. Mas se direcionarmos o nosso olhar ao modo de organização de vida dos povos indígenas, quilombolas e de terreiros, é possível visualizar uma outra relação do ser humano com os demais seres vivos e com os recursos naturais. Porque, esses povos, orientam-se a partir de uma dinâmica em que não é condicionada pelos sistemas e princípios eurocêntricos. 

 

Nos terreiros de religiões afro-indígenas, a vida é pensada e alicerçada em fundamentos africanos e indigenas que refletem no que se refere a formação de identidade do povo negro presente nesses locais, no modo que se constrói a relação com sagrado, com a ancestralidade, com o meio social, incluindo a natureza. Produz-se então uma ética própria, a ética de terreiro. Não há lugar onde essa ética esteja mais evidente do que na cozinha, que é um local poderoso, detentor da força vital que faz pulsar a vida e ativa as memórias ancestrais que se encontram dentro de cada orí (cabeça). 

 

O ambiente socializante que é a cozinha de terreiro, sempre tem uma “Iabassê” (do idioma iorubá), que significa “senhora que cozinha”. A responsabilidade de Iabassê é dada pelos orixás a uma mulher em cada terreiro. Ela que detém os segredos dos sabores, prepara a comida de santo (orixá), as oferendas e também alimenta a  comunidade. Iabassê também está dentro do princípio gerador da mulher que dá vida, pois compreende-se que o alimento  é “força vital” que nos mantém em movimento. 

 

Há um aprendizado em notar que nenhuma dessas mulheres trabalham sozinhas, sempre compartilham os processos de sua cozinha com os os filhos da casa. Há  uma troca entre mais  novos e mais velhos e essa interação possibilita a absorção de conhecimentos e perpetuação de fundamentos. Não se inicia a festa/obrigação sem a presença daquela que foi responsável por preparar os pratos de comida, assim a cozinha de terreiro nos ensina também sobre honra e reconhecimento. Essa percepção se desloca do olhar que interpreta o trabalho do gênero feminino na cozinha como submissão e servidão, e da mesma forma, pejorativamente, retrata a culinária. 

 

Na prática de terreiro, a comida que a cozinha produz tem grande significado, porque procedem de um conceito em que existe vida em tudo, todas ações devem ser conscientes e inscritas dentro de uma esfera sagrada e ritualística, estabelecendo uma relação de respeito  com o ser vivo que se tornará alimento e alimentará os orixás, a casa, a comunidade e tudo que come, nutrindo a força vital. 

 

Na cozinha de terreiro, se aprende a valorização de todo o processo de obtenção do que irá ser preparado, valoriza-se o que planta, aquele que colhe e o que leva até o destino. Os orís que trabalham com a terra devem ser louvados, pois são eles que se relacionam intimamente com o Tempo, sabendo o momento correto do plantio e da colheita. Além disso, apontam que há um limite na exploração dos recursos da natureza, para que no futuro não haja escassez. 

 

Assim como nas aldeias africanas, para os povos de terreiros, a “alimentação parte-se do princípio do necessário, buscando-se, tanto quanto possível, evitar e interditar o desperdício” (NASCIMENTO, 2015, p. 62). A discussão não se limita apenas a alimentação, o “princípio do necessário” é um valor incorporado pelos povos de axé  desde suas primeiras organizações e atualmente alguns grupos se direcionam através dessa visão, alertando para o que definem como “consumo consciente”. A cozinha de terreiro prepara o alimento para o momento da coletividade, nunca é só para um, é  nisso que se marca a noção de “fartura”, sendo diferenciada de “excessividade”. É necessário uma mesa em que todos possam consumir e se nutrir, porém produzir mais do que é  necessário significa desrespeito e desperdício. 

 

Enquanto isso,  a sociedade se moderniza e se individualiza, com o capitalismo e suas noções de meritocracia,  produzindo a desigualdade, a fome e a pobreza extrema, exterminando e explorando todos os recursos de maneira desmedida e as consequências que paulatinamente se estruturam, hoje tomam proporções absurdas. Karl Marx explica muita coisa, mas pouca gente acessa esse conhecimento e, assim, a estrutura se mantém e massacra nosso povo. Precisamos nos orientar sob a ética afrodiaspórica de terreiro no comando das Iabassês, ler Beatriz Nascimento, escutar Nego Bispo e as vozes das favelas, nos referenciar com os povos indígenas brasileiros.

 

Texto produzido e enviado por Quezia Dourado

 

REFERÊNCIAS

 

BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. Trad. Daniela Kern e Guilherme Teixeira. São Paulo/Porto Alegre: Edusp/Zouk, 2007.

 

AGUIAR, Viviane Soares. Mário de Andrade e a construção da cozinha brasileira. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, Brasil, n. 82, p. 78-96, ago. 2022.

 

NASCIMENTO, Wanderson Flor. Alimentação socializante: notas acerca da experiência do pensamento tradicional africano.  das Questões n. 2, fev/maio, 2015.

PONTES, Katiuscia Ribeiro. Kemet, escolas e arcádeas: a importância da filosofia africana no combate ao racismo epistêmico e a lei 10639/03. Rio de Janeiro. Jan/2017.

plugins premium WordPress