(Foto: Clay Banks/ Unsplash)

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Valdenia Menegon

17/04/2023

A espetacularização da dor da população preta: entre o mundo real e os realities shows

Os últimos dias foram marcados por situações de racismo escancaradas através das redes sociais. Entre a suposta doutora em Psicanálise que analisou o perfil do assassino das crianças na creche em Blumenau/SC, denominando-o de psicopata e associando as características da psicopatia a partir “do formato do corpo”, onde supostamente “existe um formato de rosto específico que a gente já percebe que a pessoa tem uma tendência a cometer crimes”, passando pelo caso da empresária racista que espancou um entregador de aplicativo, um homem preto, em São Conrado no estado do Rio de Janeiro e finalizando com a campanha de arrecadação de valores em benefício desse homem, empreendida por dois homens brancos famosos, traz consigo as marcas da colonização e da permanência da estrutura racial na sociedade brasileira. 

Na entrevista concedida a uma emissora, a profissional da área da Psicanálise faz uma evidente tentativa de reaver teorias racialistas do final do século XIX e início do século XX, o denominado Racismo Científico (meus alunos/as irão lembrar das aulas de Antropologia), onde as características fenotípicas das pessoas eram lidas como passíveis de definir caráter e personalidade. Quem quiser saber mais, só buscar os trabalhos de Nina Rodrigues e Cesare Lombroso. A fala também endossa a perspectiva nazifascista, por ter sido largamente utilizada pelos regimes totalitários para justificar o encarceramento em massa e o uso de tortura.  

O caso da mulher branca, lida pela imprensa brasileira como “empresária” e “ex-atleta”, que espancou com uma coleira de cachorro o entregador negro, representa a marca da sinhá, a figura feminina que foi e continua sendo mais próxima do homem branco em privilégios do que qualquer homem preto. Já os dois homens brancos, revestidos pela faceta do “bem”, não fizeram nada mais do que ter uma atitude ética diante de uma situação de crime de racismo cometido pela mulher branca. Além do fato de que o dinheiro arrecadado na “vakinha” foi doado por outras pessoas, na grande maioria, possivelmente, pobres. Fazer caridade com o dinheiro alheio, não deve ser tão difícil quanto andar de motocicleta nas ruas de uma favela do Rio de Janeiro, não é? – contém enorme ironia. 

Para coroar a espetacularização do racismo, a entrevista do homem negro sendo exposto, não apenas ao ser surrado, mas também para agradecer aos beneméritos. É importante o posicionamento de pessoas brancas em situações de racismo. O grande problema observado na estratégia usada pelos dois artistas é que transforma brancos em protagonistas em uma causa muito cara ao povo negro. Os dois serão louvados por essa boa ação. É o eterno retorno da narrativa do branco salvador que atrapalha, muito, a luta antirracista. O espetáculo montado me faz lembrar fotos de pessoas brancas visitando aldeias em algum país africano ou em aldeias indígenas no Brasil. 

Em novembro de 2022, 4 (quatro) pessoas morreram e 13 (treze) ficaram feridas em invasão à Escola Estadual de Ensino Fundamental e Médio, Primo Bitti, e em uma escola particular no município de Aracruz, no Espírito Santo. O assassino era um homem branco, de 16 anos, nazista, filho de policial militar. Ao tratar sobre o aumento dos casos de ataque a escolas, o jornal “O Estadão”, ilustrou a matéria com uma fotografia de uma mão negra apertando o gatilho. 

A ação do “O Estadão” mostra como o racismo institucional funciona como um agente regulador em nossa sociedade. Silvio Almeida (2017) chama atenção para o fato de que “Regulação envolve as normas, o direito, e também as regras ocultas de funcionamento do sistema”. Ou seja, o racismo é um modo de regulação desigual, em uma sociedade de conflitos”.

Também em novembro de 2022, câmeras de segurança mostraram um homem branco agredindo músico negro com cassetete em Curitiba. A vítima foi xingada de ‘macaco’, além de ter fraturado o maxilar, quebrado dente e teve que passar por cirurgia reparativa. O agressor foi solto e nos dias subsequentes fez outra vítima. O que move essas pessoas é a certeza da impunidade. 

Classificamos essa certeza de impunidade, o que Sílvio Almeida (2019, p. 39) aponta como supremacia branca “[…] definida como a dominação exercida pelas pessoas brancas em diversos âmbitos da vida social. Essa dominação resulta de um sistema que por seu próprio modo de funcionamento atribui vantagens e privilégios políticos, econômicos e afetivos às pessoas brancas”.

Ao tempo em que essas situações no “mundo real” são espetacularizadas, o experimento social Big Brother Brasil – edição 2023 – mostra, sem nenhum pudor, cenas de racismo em suas variadas nuances e matizes. A edição com maior participação de negros, na qual os participantes chegaram a construir uma paleta de tons de preto, as situações de racismo vivenciadas causam asco e se tornaram gatilhos fortíssimos para a saúde mental para qualquer negro com o mínino de letramento racial. 

 As situações de racismo vivenciadas por Fred Nicácio, César Black e Ricardo Alface, além das outras participantes negras, escancaram o modo como pessoas brancas se articulam a partir  de um pacto narcísico para manter seus privilégios, como bem especifica Cida Bento. 

Não temos um problema negro no Brasil, temos um problema nas relações entre negros e brancos. É a supremacia branca incrustada na branquitude, uma relação de dominação de um grupo sobre outro, como tantas que observamos cotidianamente ao nosso redor, na política, na cultura, na economia e que assegura privilégios para um dos grupos e relega péssimas condições de trabalho, de vida, ou até a morte, para o outro (Cida Bento, 2022).

O modo como Key Alves, Gustavo Cowboy e Cristian Vanelli, expressaram seus medos em relação à religião de Fred Nicácio, um homem adepto ao  Ifá, culto tradicional Iorubá, aponta como o racismo religioso é presente na sociedade brasileira. Para Eugênio Gabriel e Fernando Salazar (2023), “O Racismo é constituído por ações conscientes e inconscientes por parte de quem pratica o ato racista”. No caso do BBB, o racismo religioso se apresenta de variadas formas, incluindo as manifestações de medo em relação às práticas de religiões de matrizes africanas. 

De acordo com Sueli Carneiro (2020, p. 234), existe uma narrativa falaciosa sobre a tolerância às religiões de matrizes africanas no Brasil. 

A despeito disso, a crença na tolerância religiosa e racial compõe elementos naturalizados de nossa tradição cultural. No entanto, essa concepção torna-se cada dia mais difícil de ser sustentada diante das práticas de certas denominações religiosas que revelam a face perversa e insidiosa da intolerância religiosa e racial em nossa sociedade. 

Os casos de racismo religioso têm sido recorrentes tanto no chamado mundo real, quanto no campo midiático das redes sociais e nos realities shows que são consumidos de maneira desmedida pela sociedade brasileira. Prática que se enquadra como racismo institucional, na medida em que, na mesma edição, dois homens brancos foram expulsos pelo crime de assédio contra uma participantes, mas nos casos que envolvem racismo, o silêncio da emissora é assustador e perverso. 

Não é de hoje que corpos negros são chamativos para a espetacularização. No século XIX, eram comuns os espetáculos em que corpos negros em formatos variados eram expostos em “zoológicos humanos”. As imagens grotescas constam em livros e jornais da época. Ao trazer onze participantes negros para o Big Brother Brasil em 2023, a emissora pode ser analisada como uma empresa que deseja apresentar através do grupo de “irmãos”, a imagem da pluralidade da sociedade brasileira, o que seria ótimo, desde que a mesma se responsabilizasse pelo modo como esses corpos e vidas são expostos e agredidos.

É assustador como a imagem de Ricardo Alface – homem negro que em vários momentos do Programa mostrou que não tem letramento racial – é constantemente associada à agressividade. Do mesmo modo, César Black, apesar das inúmeras tentativas de se apresentar carinhoso e atento às necessidades das pessoas, é lido como um homem machista e agressivo. As cenas impetradas por Bruna Griphão, Larissa Santos e Amanda Meireles (mulheres brancas) e até Aline Wirley (mulher negra), contra César Black, deixam qualquer pessoa negra em desespero.

Não estamos aqui querendo colocar essas três mulheres em situação de igualdade, porque apesar de estarem no mesmo grupo pela disputa do prêmio, já ficou evidenciado que a qualquer momento Aline será a primeira a ser descartada pelo quarteto.  O que separa Aline Wirley das outras componentes do quarteto? A branquitude e seu projeto de supremacia branca. 

Como costuma alertar a atriz e comediante Maíra Azevedo, “Acontece no BBB e acontece na vida”, é real. Enquanto experimento social, o que se verifica no BBB é a permanência de estereótipos relacionados a corpos negros: a preta raivosa, a “mulata” sensual, a negra da cozinha, o negro agressivo, subserviente ou passivo, a serviço da branquitude. Quando a pessoa negra foge a essas marcas, como Fred Nicácio e Domitila Barros, é analisada como “militante”, “chato”, ou como Sarah Aline, a que “fala um monte de coisa difícil”, conforme afirmou Bruna Griphão ou que tem um “olhar raivoso”, de acordo com Fred Desimpedidos, o que fez, com que ele entendesse que Sarah era uma pessoa maldosa.

A realidade é que corpos negros incomodam quando estão em situação que não seja de subalternidade. A branquitude ainda não se acostumou a aceitar a presença de negros e negras em espaços de poder, seja na mídia, na política, na educação e na cultura. 

No caso dos homens negros, a persistência de umaimagem de animalização e de sexualização permanece a tônica. Não à toa, o encarceramento em massa da população negra não para de crescer. O problema das prisões é sistêmico. Segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), temos atualmente 919.393 pessoas privadas de liberdade. Em abril de 2020, eram 858.195 pessoas presas. Esse número caiu para  682,200, enquanto a superlotação caiu de 67,5% para 54,9%. De acordo com o 14º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, que reflete dados de 2018 e 2019, o percentual de pessoas negras (pretas e pardas) no sistema prisional brasileiro é de 68,7%. O encarceramento promove uma espécie de segregação racial.

Por outro lado, o Atlas da Violência (2022) mostra que 76,2% das pessoas assassinadas no Brasil em 2020 eram negras. Em uma década, foram assassinadas 405.811 pessoas negras. Negros foram 75,8% das vítimas de homicídio; 64,3%  das vítimas de latrocínio; 75,5% das vítimas de lesão corporal seguida de morte. Entre 2009 e 2019 o número de negros mortos subiu 1,6%, Enquanto o número de não negros baixou 33%. Mulheres negras assassinadas subiram para 2%. Mulheres não negras assassinadas baixou para 26,9%

A chance de um negro ser vítima de homicídio no Brasil é 2,6 vezes maior do que a de um não negro. A taxa de mortalidade de negros é de 29,2 por 100 mil, já a taxa de mortalidade de não negros é de 11,2 por 100 mil. Isso significa que a cada 23 minutos um jovem é assassinado no Brasil. Pessoas negras representam 62,7% dos policiais assassinados, assim como correspondem a 78,9% das vítimas de intervenções policiais.

Essa realidade também atinge nossa infância. O Anuário de Segurança Pública aponta que entre as crianças e adolescentes vítimas de mortes violentas por faixa etária e raça/cor 66,3% são negras, 31,3% são brancas e 2,4% pertencem a outro na população de 0 a 11 anos. Em relação às crianças e adolescentes de 12 a 17 anos, 83,6% são negras, 15,9% são brancas e 0,5 estão entre outros (Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2022) 

Assim é que se perpetua um verdadeiro projeto de apagamento da nossa história, das nossas memórias, assim como dos nossos corpos, seja no sentido físico ou de cancelamento nas redes sociais. Um corpo negro é facialmente descartado nas plataformas digitais. Assim como são continuamente derrotados pelas eliminações nos realities. Enquanto finalizo esse texto, o coração está apertado com o medo medonho de que na noite de hoje (16 de abril), Sarah Aline seja eliminada em favor de Bruna Griphão, o exemplo mais perverso da branquitude que a edição apresenta. Aquela que foi capaz de perdoar o homem branco abusador, mas que não perdoa e se sente no direito de gritar de maneira estridente contra um homem preto. Que nossos corpos, nossas vidas e nossa cultura sejam respeitados e que não sirvam mais de espetáculos. É sobre isso e não está nada bem.

 

Referências

ALMEIDA, Sílvio. Entrevista para Gabriel Valery. Encarceramento em massa é continuidade da segregação racial. Publicado em 28/05/2017 para a Rede Brasil Atual. Disponível em:  https://www.redebrasilatual.com.br/cidadania/encarceramento-em-massa-e-a-continuidade-da-segregacao-racial/. Acesso em 14 de abril de 2023. 

BENTO, Cida. O pacto da branquitude. Companhia das Letras, 2022.

CARNEIRO, Sueli. Escritos de uma vida. São Paulo: Editora Jandaíra, 2020.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ). Novos dados do sistema prisional reforçam políticas judiciárias do CNJ. Publicado em 20/05/2021. Disponível em:  https://www.cnj.jus.br/novos-dados-do-sistema-prisional-reforcam-politicas-judiciarias-do-cnj/. Acesso em 16 de abril de 2023.

FÓRUM BRASLEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Anuário Brasileiro de Segurança  Pública 2022. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2022/06/anuario-2022.pdf?v=5. Acesso em 15 de abril de 2023. 

KRÜGER, Helena,; CARVALHO, Marcela; SOUZA, Murilo e COLOMBO, Mariah. Câmeras flagram homem agredindo músico negro com cassetete em Curitiba; vítima diz ter sido xingada de ‘macaco’. In G1 PR e RPC Curitiba. Publicado em 26/11/2022. Disponível em: https://g1.globo.com/pr/parana/noticia/2022/11/26/cameras-flagram-homem-agredindo-musico-negro-com-cassetete-em-curitiba-vitima-diz-ter-sido-xingada-de-macaco.ghtml. Acesso em 14 de abril de 2023.

IPEA. Atlas da Violência 2022. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/. Acesso em 10 de março de 2023. 

LONGO, Ivan. Identificar psicopatas pelo “formato do corpo”? Especialista desmonta tese nazista de psicanlista de SC. In Fórum. Publicado em 14/04/2023. Disponível em: https://revistaforum.com.br/saude/2023/4/12/identificar-psicopatas-pelo-formato-do-corpo-especialista-desmonta-tese-nazista-de-psicanalista-de-sc-134200.html. Acesso em 16 de abril de 2023. 

PODER 360. Criticado, “Estadão”, troca foto de mão negra segurando arma. In Poder 360. Publicado em 27/11/2022. Disponível em: https://www.poder360.com.br/midia/criticado-estadao-troca-foto-de-mao-negra-segurando-arma/. Acesso em 14 de abril de 2023. 

SALAZAR, Fernando e CARVALHO, Eugênio Gabriel R. O racismo religioso e suas faces. In Blog Instituto Valdenia Menegon.  https://institutovaldeniamenegon.com/o-racismo-religioso-e-suas-faces/ Acesso em 14 de abril de 2023.

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