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Valdenia Menegon

31/10/2023

A filosofia do bem viver e a extraordinária esperança de pensar outros mundos possíveis

Para quem vivencia o ativismo de maneira coletiva e não arraigada à epistemologias ocidentalizadas, pensar formas de construção de outros mundos se torna algo a ser buscado constantemente. Eu exerço na educação pública, a função de gestora pedagógica, responsável por todos os processos de orientação metodológica, organização e efetivação do currículo e estruturação, junto com meus pares, do Projeto Político Pedagógico da escola. Eu diria que tudo na escola gira em torno do pedagógico, instância maior de qualquer espaço escolar. Enquanto ativista, atuo diretamente em duas grandes frentes: a ampliação da participação das mulheres negras nas políticas institucionais, na luta antirracista e, essencialmente, na defesa da história e da memória do povo negro.

 

Dentre os desafios impostos ao cargo de gestora no espaço da educação pública, está aquele de contribuir para uma escola plural, inclusiva e sustentável, que respeite as diferenças e não-racista. Tudo isso, muitas vezes, barra na própria estrutura da sociedade ou nas pequenas formas de viver no mundo de cada pessoa que constrói o espaço escolar. Em meio a toda essa gama de obstáculos, compreender outras formas de pensar um outro mundo, um mundo possível, me levou a buscar na ancestralidade os degraus para essa construção. 

 

Na ânsia por encontrar uma epistemologia que desse conta da história do meu povo e de outros povos oprimidos pelo colonialismo, me deparei com alguns pensamentos que, respeitando a realidade em que atuo, têm me servido de base para projetar o amanhã. Entre essas epistemologias, posso citar: o mulherismo afrikana, uma teoria que se move a partir das vivências e experiências de mães africanas em diásporas; a filosofia africana Ubuntu – “eu sou porque nós somos”-, que encontra forte eco na perspectiva do Buen Vivir abraçada pelos equatorianos, o Vivir Bien dos povos bolivianos ou o teko porã dos guaranis. 

 

Essas filosofias estão bastante presentes também nos quilombos de origem africana, que se baseiam na comunidade, na potencialização dos seus, na acolhida ao estrangeiro, na partilha do que é produzido e no respeito à ancestralidade. Hoje, me resumirei a escrever sobre o Bem Viver, a mais próxima tradução em brasilês, para o termo.

 

Essa epistemologia foi organizada pelo filósofo equatoriano Alberto Acosta, mas reúne o modo de viver de diversos povos ameríndios e está condensada na obra “O bem viver: uma oportunidade para imaginar outros mundos” (2017). Territorialmente, essa filosofia está fincada em solos andinos e amazônicos, no entanto, é possível encontrá-la em várias partes do globo terrestre. Esse modo ancestral de conviver no mundo, alicerça-se na perspetiva dos bons conviveres e isso nos reporta ao necessário cuidado com a natureza, afinal, natureza e cultura devem conviver em harmonia, para que a própria existência humana seja garantida.  

 

Enquanto parte dela (a natureza), os seres humanos, em sua diversidade, devem compreender que não podemos continuar pautando nossa existência como apartada dos ecossistemas, dos nossos irmãos e dos demais seres do planeta, assim como de nós mesmos. Desse modo, imagino como nós, pessoas negras, estamos distantes da natureza desde quando fomos colonizados, já que o colonialismo nos apartou das nossas histórias e das nossas memórias. Ao estarmos longe de tudo o que é nosso, nos distanciamos do que somos na essência. 

 

O Bem Viver se afirma no equilíbrio, na harmonia e na convivência entre os seres. Na harmonia entre o indivíduo com ele mesmo, entre o indivíduo e a sociedade, e entre a sociedade e o planeta com todos os seus seres, por mais insignificantes ou repugnantes que nos possam aparentar (Turino, in Acosta, p. 5, 2017).



Trata-se, portanto, de uma filosofia política que impacta diretamente sobre o modo como vivemos e percebemos o mundo. É um verdadeiro “reposicionar-se” diante da própria existência, o convívio com os outros e o respeito à natureza. Não é um mero adequar de documentos oficiais para inserir ou garantir um “recorte” a determinadas populações para que essas se “enquadrem” em um sistema existente, pronta para o consumo. Trata-se, na verdade, de uma reviravolta em termos estruturais. 

O bem viver pauta-se nos princípios da comunidade, daí a proximidade irrestrita com o modelo de sociedade quilombista. Assim como está profundamente marcada pela ideia de construção de um “[…] novo pacto de convivência social e ambiental” (ACOSTA, p. 28, 2017). Não se trata de mera utopia, mas de um modelo de sociedade que (re)existe, mesmo após mais de 500 anos de colonização. No que se refere ao campo educacional,  requer que a “[…] educação intercultural, por exemplo, deve ser aplicada a todo o sistema educativo – obviamente, porém, com outros princípios conceituais” (ACOSTA, p. 26, 2017).

Em termos de organização de sociedade, o Bem Viver indica que cada pessoa seja dona da própria existência, mas sem ferir os outros ou a natureza, bem ao exemplo dos povos indígenas. É um ponto de partida ainda em construção, baseado essencialmente em experiências de respeito ao social e ao ambiental. 

Povos indígenas possuem uma relação muito particular e distinta com os territórios em que habitam. Na cosmopercepção de muitas populações (incluindo indígenas e quilombolas). Rios, montanhas, cavernas e florestas possuem uma simbologia de lugar específico, e ajudam esses povos a compreender e encontrar seu lugar no mundo. Por isso, qualquer forma de interferência externa pode ser extremamente danosa para a cultura desses grupos. 

Não podemos nos esquecer que as populações indígenas são os protetores/guardiães de florestas e da biodiversidade do território brasileiro. Inclusive tendo entre seus pares, aqueles que são denominados de guardiões da floresta. Muitos, infelizmente, brutalmente assassinados. Para quem é ativista, uma das principais preocupações tem sido com a segurança, inclusive a espiritual desses defensores das florestas. Quando um território é invadido, violado, os campos espirituais e do sagrado também são atingidos.

Outro ponto que precisamos assinalar é que não podemos esquecer que as memórias das populações indígenas estão profundamente alinhadas ao seus territórios e que em grande medida, essas memórias são repassadas de geração em geração através dos mais velhos e que suas crenças de cura e de religiosidade estão fortemente vinculadas ao contato com os elementos da natureza.

Seguindo a mesma percepção, os povos de quilombo guardam suas memórias e sua história tendo uma base na ancestralidade africana que atravessou o Atlântico e por aqui, contra suas vontades, desembarcaram e passaram a constituir uma sociedade transatlântica e que fala o pretoguês (NASCIMENTO, 2016; GONZALES, 2021).

De acordo com Maria Beatriz Nascimento (1985), a origem da palavra Kilombo está associada aos Imbangala, povos nômades, guerreiros, antropófagos, do Leste da África e que conquistaram parte do território de Angola. Possuíam uma sociedade aberta a todos os estrangeiros desde que iniciados. O ritual de iniciação, consistia na circuncisão, que representava um rito de passagem, incorporando jovens de várias linhagens ao povo Imbangala.

O Kilombo seriam os próprios indivíduos que se incorporaram à sociedade Imbangala. A captura de jovens meninas e meninos não iniciados servia a este propósito de desprender-se das regras e costumes do grupo de origem e prestar obediência exclusiva ao chefe do Kilombo e não mais aos mais velhos da linhagem e aos detentores das insígnias de poder onde nasceram.

Em se tratando da história e da memória dos quilombos no Brasil, o primeiro documento oficial português tratando sobre quilombo aparece em 1559. Em 1740 os Portugueses definiram formalmente o significado de Quilombo: “toda a habitação de negros fugidos que passem de cinco, em parte desprovida, ainda que não tenham ranchos levantados nem se achem pilões neles”.

Com o tempo, o significado e a simbologia do quilombo vai se ampliando. O quilombo não tem a perspectiva de poder que conhecemos, esse modelo ocidental. Cada indivíduo é o quilombo. Quilombo no sentido histórico deve ser analisado enquanto assentamento social e organização que cria uma nova ordem interna e estrutural. O quilombo é uma instituição autônoma e articulada com o mundo externo, mas que vivencia seu modo de ser em conexão com a natureza.

Em torno desta tomada de decisão, estão presentes manifestações culturais desses corpos (batuques, festas, práticas religiosas e filosóficas) e o desejo de liberdade. Nesse território, é possível perceber a conexão entre cultura e natureza, entre o corpo e a mente, o sagrado atuando em todos os aspectos. Uma profunda comunhão entre as pessoas, suas produções e o ambiente.

De acordo com o mestre Antônio Bispo (2015, p. 84-85),

“[..] o melhor lugar de guardar a mandioca é na terra […], a melhor maneira de guardar o peixe é nas águas. E a melhor maneira de guardar os produtos de todas as nossas expressões produtivas é distribuindo entre a vizinhança, ou seja, como tudo que fazemos é produto da energia orgânica, esse produto deve ser reintegrado a essa mesma energia”.

Em um mundo ocidentalizado, regado a disputas por poder, busca incessante por dinheiro e a individualização como modelos civilizatórios, é preciso pensar e elaborar novas formas de ser e viver no mundo. É nesse caminho que eu deixo aqui a reflexão deixada em uma memória de Antônio Bispo dos Santos (2015, p. 90) sobre uma entrevista concedida a um repórter por um indígena Yanomami. Este foi questionado pelo repórter da seguinte forma:

“—Você acredita que o mundo vai acabar?

—Acredito que tudo que começou um dia se acaba, inclusive o mundo. Porém, o mundo não vai acabar nem quando, nem do jeito que você está me perguntando.

—Como e quando então o mundo vai se acabar?

—O mundo vai acabando aos poucos, por espécie, então o mundo acaba sempre. E quem vai acabar com as espécies são os brancos, vão acabar inclusive com os Yanomami, até ficarem só eles, os brancos. E aí então eles vão se autodestruir. O mundo até pode continuar, mas acabou-se para as espécies do tempo dos brancos”.

 

O alerta serve para nos apontar que se faz urgente a edificação de um novo marco civilizatório que tenha por base essas epistemologias que deixamos aqui como exemplos. Nesse sentido, entendemos que o bem viver se contrapõe ao viver melhor, difundido nas sociedades ocidentais e que não basta ganhar mais e consumir. Precisamos mesmo é adotar esses saberes, vivências ameríndios e afroamericanos para edificar uma sociedade verdadeiramente democrática, proporcionando um rompimento estrutural com as concepções de mundo atreladas ao modelo de desenvolvimento ocidental.



REFERÊNCIAS



ACOSTA, Alberto. O bem viver: uma oportunidade para imaginar outros mundos. Rio de Janeiro: Elefante, 2016.

 

GONZALEZ, Lélia; RIOS, Flávia. Por um feminismo afro-latino-americano. Zahar, 2020.

NASCIMENTO, Beatriz. O conceito de quilombo e a resistência cultural negra. In Revista Afrodiaspóra.  Ano 3. n. 06 e 07, p. 41-49, Rio de Janeiro: IPEAFRO, 1985.

SANTOS, Antonio Bispo dos. Colonização, Quilombo: modos e significações. Brasília: UNB, 2015.

TURINO, Célio. Prefácio à edição brasileira. In, ACOSTA, Alberto. O bem viver: uma oportunidade para imaginar outros mundos. Rio de Janeiro: Elefante, 2016.

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