Vivemos tempos em que é necessário apontar ou relembrar aquilo que, na história do Brasil, é incontestável: dois povos e um colonizador. Segundo a ideia central desenvolvida por Cheik Anta Diop (1974), existiam dois eixos culturais, um do Sul e outro do Norte. Em um determinado momento da história, esses dois berços se encontram e entraram em colisão. O resultado dessa trombada, foram as variadas formas de violências que culminaram, em muitos casos, na coisificação de pessoas perpetradas pelo berço nórdico.

Africanos arrancados do seu continente e indígenas dominados em terras próprias. Os africanos, que em seus reinos, tribos e clãs, eram pessoas livres, com autonomia para manifestar seu modo de viver, suas tradições e costumes que lhe conferiam identidade, tiveram seus corpos escravizados, suas culturas horas dizimadas, horas apropriadas, suas terras exploradas e suas vidas modificadas em grande medida. No mesmo processo, indígenas tiveram suas terras invadidas, saqueadas, e logo mais, foram escravizados ou mortos pelos colonizadores europeus.

Submetidos à tortura e exploração, africanos e indígenas foram forçados a abandonar suas identidades e incorporar a cultura branca, professando a fé cristã que freneticamente condenava as religiões dos povos colonizados. O oceano Atlântico é um espaço de uma travessia no plano da alma (soul). Os numerosos corpos negros que atravessaram esse mar criaram, na fala de Beatriz Nascimento (2006), uma sociedade transatlântica, marcada pela resistência dos povos negros em manter suas vidas e sua ancestralidade.

Com muita resistência, esses povos que fizeram o Brasil, conseguiram preservar suas memórias, repassando para seus descendentes aquilo que a supremacia branca não matou, nem roubou. Essa população negra se mantém conectada a partir do compartilhamento de experiências, dores, sabedores, alegrias, ritmo, batuques e movimento.

Há registros deixados pela imprensa, que durante o século XIX e nas décadas iniciais do século XX, eram comuns ações violentas de policiais para acabar com festejos em terreiros e com rodas de samba e capoeira, pois se considerava “feitiçaria”, baderna e vadiagem. Nessas circunstâncias, a população afro-indígena que buscava vivenciar suas origens étnicas e culturais, era criminalizada pela forte política de controle e busca pelo embranquecimento.

É através da cultura que é possível identificar um povo e saber suas origens. Música, dança, moda, culinária, religiosidade, ciência e outras formas de produzir e perceber a realidade são expressões culturais. Como afirma a yalorixá e escritora Mãe Stella de Òsósi: “O que a gente não escreve o tempo leva”. Apesar da nossa larga experiência em oralidade, precisamos deixar nossos escritos, pois a supremacia branca é um projeto que tem como base o domínio e a apropriação das produções de povos outros.

No cenário atual, dos graves problemas sociais que se intensificam no Brasil, podemos destacar de um lado, constantes ataques a tendas e terreiros, locais sagrados de religiões de matrizes africanas e do outro, a tentativa desenfreada de tornar a existência e as manifestações da cultura africana e indígena mais próximas dos padrões aceitáveis, ou seja, torna-las “brancas”. Em relação ao primeiro caso, é necessário afirmar que os ataques e perseguições cometidos contra as religiões de matrizes africanas se constituem como crimes, ferindo a Constituição Federal, devendo ser severamente investigados e punidos pelo Estado brasileiro.

Quanto ao segundo caso, que se trata de forma evidente de apropriação cultural, assinala para o fato de que em uma sociedade racializada como a nossa, as representações e simbologias de povos amefricanos e afroindígenas, não podem existir, como de fato são, precisando ser modificadas e ajustadas, para só assim, serem aceitas como “cultura civilizada”. Quando isso não acontece, o processo de apropriação cultural se desencadeia por parte da “branquitude” brasileira. Não à toa que se propagam de forma desenfreada pelas redes sociais e outros mecanismos da Internet, cursos e mentorias sacerdotais que disseminam ideias de ensinamentos sobre aprender as teologias da umbanda e candomblé, esquecendo que essas expressões da cultura afrodiaspórica devem, antes de tudo, serem vivenciadas nas tendas e terreiros e que os ensinamentos são repassados pela oralidade e convívio com mães e pais de santo.

Como nos alerta Nah Dove, é preciso defender a cultura como instrumento de resistência e alicerce para a demarcação de uma nova sociedade: “Enfatizo a validade das experiências de mães, que olham para a sua reAfricanização como a solução para as desafiantes estruturas sociais alienígenas e inadequados valores e comportamentos entre homens e mulheres Africanos”.

Neste sentido, é urgente que fiquemos atentos e atentas às tentativas de rompimento com as últimas fronteiras daquilo que é simbólico da cultura africana e indígena no Brasil: os terreiros de Umbanda,  Mina, Terecô, Jurema, Candomblé, Catimbó, entre outros diversos cultos, assim como a Capoeira. Livrá-las do processo de branqueamento urge como necessidade para que não nos percamos de nós mesmos e caiamos no abismo daquilo que é alheio aos ensinamentos das nossas ancestralidades.

 

Autores:

Geyciele Quezia Silva Dourado – Presidenta do Instituto Valdenia Menegon; Acadêmica de Serviço Social/UniFacema; Umbandista.

Eugênio Gabriel Rocha Carvalho

Acadêmico em Direito – Faculdade Maranhense São José dos Cocais; articulador do Instituto Valdenia Menegon; Umbandista.

Fernando Salazar dos Santos

Acadêmico em Psicologia – UniFACEMA; Umbandista.

Revisão do texto: Lígia Alves, professora, graduada em LETRAS/INGLÊS pelo CESC/UEMA, coordenadora da UNEGRO Caxias, secretária do Instituto Valdenia Menegon.

 

Referências bibliográficas

Diop, C. A. (1974). The African origin of civilization: Myth or reality? (M. Cook, Trans.). New York: Lawrence Hill. (Original work published 1955).

DOVE, Nah. Mulherismo africana: uma teoria afrocêntrica. In Jornal de Estudos Negros, Vol. 28, № 5, maio de 1998 515-53. Disponível em: https://xdocs.com.br/doc/mulherisma-africana-uma-teoria-afrocentrica-nah-dovepdf-280ljk5rp98w. Acesso em 20 de junho de 2021.

SANTOS Maria Stella de Azevedo (Mãe Stella de Òsósi). Mãe Stella: “O tempo leva o que não se escreve”. Entrevista. Portal Geledés. Disponível em: https://www.geledes.org.br/mae-stella-o-tempo-leva-o-que-nao-se-escreve/. Acesso em 30 de julho de 2022.

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