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Savio Roz

17/10/2023

Estados Unidos da África: e se o Super-homem fosse negro e africano?

Ainda aquecido, o lançamento de “Estados Unidos da África”, história em quadrinhos de Anderson Shon e Daniel Cesart, merece mais atenção. O que começou como um sonho solitário, mas de potência comunitária, ganhou a parceria artística em seu trajeto, arriscou-se campanha de financiamento coletivo, conclui-se uma aposta pertinente e arriscada… definitivamente necessária. Essa dupla esteve conosco no último dia 4 de outubro, em live para o Instituto Valdenia Menegon, falando da história em quadrinhos que é central desta leitura crítica.

 

A história em quadrinhos Estados Unidos da África, com seu protagonista, o superpoderoso rei Bantu, subverte o sentido do mainstream super-heróico. Sem assumir, os super-heróis estadunidenses ajudaram a uniformizar (ou ajudaram a tentar) o ocidente, em reflexa oposição ao mundo que não lhe fosse similar ou subalterno. Então, muito pouco se fez para tratar do outro, por exemplo, com o caso do Pantera Negra e da Tempestade, ambos bastante limitados e com debates bastante restritos. Ainda que não produza um rompimento total, Estados Unidos da África propõe uma imaginação contrária às lógicas da colonialidade do olhar textual ou gráfico.

 

O caso de Estados Unidos da África é de uma visão fora da África, sobre a questão racial e a própria centralidade do universo continental. Deste modo, a aparente inocência do panafricanismo na ficção não panfleta sobre o unitarismo político, mesmo com nomes citados como Patrice Lumumba, Marcus Mosiah Garvey, Kwame Nkrumah e Nelson Mandela, mas expressa as conexões identitárias que ligam as pessoas diaspóricas à imensidão que é a África. Deste modo, as narrativas de Shon e de Cesart, textual e visual, entrelaçam representações e representatividades. Não se trata também de uma ficção histórica, mas de uma fantasia politizada.

 

Shon defendeu em diversos espaços a condição de sua narrativa e das representações visuais de Cesart não serem afrofuturismo. Convém pontuar essa questão. Shon optou por chamar afropresentismo, não apenas pelas estruturas temporais, mas pelas expectativas de possibilidade da condição social e política da narrativa. É uma narrativa de vislumbre de elementos diversos, principalmente do conectivo das questões raciais com o continente africano nas leituras externas, de políticas identitárias da racialidade.

 

Eu e o pesquisador Julio Sandes, quando fizemos o minicurso sobre representações da África nas histórias em quadrinhos, nos deparamos com o tema do afrofuturismo. Em dado momento de nossa pesquisa, para compor o minicurso da semana de História da Universidade Estadual da Bahia, Campus Jacobina, nos deparamos com a posição crítica do quadrinhista senegalês Juni Ba em entrevista para o The Comics Journal de que a narrativa de um de seus quadrinhos não era afrofuturista: “o próprio afrofuturismo é uma coisa tão americana sobre questões e assuntos afro-americanos, e eu não sou um afro-americano”. Talvez isso diga bastante da insatisfação de Shon na rotulação tão em moda.

 

A própria narrativa dos Estados Unidos da África nos conforta. Apesar de alguns momentos se passarem num futuro próximo, ela não faz nenhuma extrapolação de ficção científica ou mesclas das questões contemporâneas com previsões futuristas utópicas ou distópicas. A narrativa se fixa nas presenças negras do agora, em suas lutas políticas e como elas podem ser debatidas numa ficção que veste-se super-heróica, mas é um romance de identidade negra. Os autores de Estados Unidos da África fizeram a narrativa seguir tempos cronológicos, psicológicos e narrativos intercalados. E como nos ofereceram datas dos eventos, a pessoa leitora pode se dar ao luxo de reordenar sua leitura entre os eventos.

 

Algumas questões são levantadas, na ficção, sem que para isso pretendam profundidades filosóficas. Sente-se que não foi essa a questão profunda, mas de trazê-las para o contexto ficcional, trazê-las à superfície. Panafricanismo, democracia e uma monarquia (teocrática, quem sabe?) nos permitem desfrutar levemente da história, mas também nos dão pontos de partidas críticos. Talvez nisso a produção que levou dois anos e muita pesquisa possa ser útil para atender os critérios da lei 10.639, servir como instrumento provocador de bons debates.

 

O uso do poder poderia fazer o protagonista dos Estados Unidos da África soar ditatorial, mas seus fins são menos Maquiavel e mais Malcolm X. Num mundo onde a existência negra não é existência, a arrogância negra não pode ser arrogância, a vaidade negra não pode ser vaidade. Na verdade, a resistência é um orgulho na existência e o rei Bantu, nos competentes escritos de Shon e na amadurecida e dinâmica arte de Cesart, demonstra isso. Não esgoto neste texto toda possibilidade sobre a generosa obra, que vem com material diverso, entre prosa e quadrinho, e muita paixão. É fundamental ler e perceber como uma experiência de entretenimento pode ser muito engajada.

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