Lei de Cotas 12.711/12: justiça histórica e estrutural

 

Se voltarmos alguns passos, lá em 1995, relembraremos um momento crucial para o fortalecimento das lutas ao acesso à educação no Brasil, protagonizadas pelo movimento social e negro. A professora e doutora Sueli Carneiro lembra que a Marcha de Zumbi do Palmares, que nesse mesmo ano, marcava o centenário da abolição, entregou um documento reivindicando políticas públicas para a população negra.

Destacamos a Lei de Cotas 12.711/12 como uma política pública de “justiça histórica e estrutural” por reconhecer que, mesmo com a assinatura da Lei Áurea em 1888, a população negra escravizada do nosso país foi ‘libertada” sem nenhum tipo de garantia de sobrevivência, sem trabalho, sem acesso à saúde, sem educação. Praticamente um “efeito dominó” de consequências que estão diretamente ligadas às causas de desigualdades dessa população.

Apesar da Lei 12.711/12 ter apenas uma década de vigência, essa ação afirmativa tem uma longa história anterior. Esse tipo de ação afirmativa começa estadualmente, na UERJ em 2002, com o primeiro vestibular do país destinando cotas raciais e sociais. Nos anos seguintes, outras instituições adotaram políticas semelhantes. Em 2007, pelo menos 40 universidades públicas brasileiras já tinham alguma cota. Portanto, em 2012, quando finalmente foi sancionada a Lei Federal, mais de 80% das instituições já tinham cotas. A legislação apenas uniformizou os critérios de entrada nas universidades federais.

A lei 12.711/12 determina que universidades e institutos federais destinem metade de suas vagas para estudantes que tenham cursado o Ensino Médio em escolas públicas, com aplicação de reserva destinada a negros, indígenas, quilombolas, deficientes e com recorte de renda.

Art. 1º As instituições federais de educação superior vinculadas ao Ministério da Educação reservarão, em cada concurso seletivo para ingresso nos cursos de graduação, por curso e turno, no mínimo 50% (cinquenta por cento) de suas vagas para estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas.

Parágrafo único. No preenchimento das vagas de que trata o caput deste artigo, 50% (cinquenta por cento) deverão ser reservados aos estudantes oriundos de famílias com renda igual ou inferior a 1,5 salário-mínimo (um salário-mínimo e meio) per capita. (Diário Oficial da União)

As cotas raciais viraram uma “subcota” dentro dessa reserva de vagas para estudantes de escolas públicas. E a porcentagem para pretos, pardos e indígenas não é fixa – varia de acordo com a quantidade de habitantes desses grupos no estado onde se localiza a instituição de ensino. Vale destacar que as cotas para Pessoas com Deficiência (PcD) foram introduzidas apenas em 2016.

 

Art. 3º Em cada instituição federal de ensino superior, as vagas de que trata o art. 1º desta Lei serão preenchidas, por curso e turno, por autodeclarados pretos, pardos e indígenas, em proporção no mínimo igual à de pretos, pardos e indígenas na população da unidade da Federação onde está instalada a instituição, segundo o último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Parágrafo único. No caso de não preenchimento das vagas segundo os critérios estabelecidos no caput deste artigo, aquelas remanescentes deverão ser completadas por estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas. (Diário Oficial da União).

 

Com a implementação da Lei de Cotas, a participação de pretos, pardos e indígenas nas universidades aumentou. Em 2001, tínhamos 31% de pretos, pardos e indígenas nas universidades públicas. Em 2020, chegamos a 52%. Confirma a socióloga Márcia Lima. Um projeto que ampliou a participação das classes C, D e E, partindo de 19% para mais de 50% hoje. Desde então, os mais pobres passaram a acessar de forma mais ampla a educação superior.

 

A pesquisa “Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil”, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mostrou que o número de matrículas de estudantes pretos e pardos nas universidades e faculdades públicas no Brasil ultrapassou pela primeira vez o de brancos em 2018, totalizando 50,3% dos estudantes do ensino superior da rede pública.

 

Desde o período de consolidação da   Lei de Cotas, é notável a efetividade e as mudanças que ela provocou durante esse longo período de dez anos. Para quem fez uso dessa política pública ou quem viu vidas transformadas, acessos ampliados, compreende porque a lei de cotas é uma política absolutamente relevante que deve continuar, fortalecida, para que mais pessoas negras, indígenas, pobres, consigam mudar a realidade social não apenas para si, mas para sua comunidade.

Quando uma pessoa dessa comunidade tem mais acesso à informação, ela possibilita que mais pessoas ao seu redor também tenham. É uma política pública que alcança toda a família desse estudante.

De acordo com o artigo Art. 7º da lei, no prazo de 10 (dez) anos, a contar da publicação da Lei, estava prevista uma revisão do programa especial para o acesso de estudantes pretos, pardos e indígenas, bem como daqueles que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas, às instituições de educação superior. Mas até o momento, essa revisão ainda não aconteceu.

Mesmo com os 10 anos da Lei 12.711/12, hoje, nós não temos dados oficiais registrados pelo governo sobre essa ação afirmativa. O que temos são estudos oriundos da dedicação de pesquisadores(as), como a Dra. Márcia Lima, Dr. Edson Cardoso e outras instituições e grupos de pesquisas envolvidos, movimentos negros e de juventude, que se empenharam durante esses dez anos da lei, para colher dados e informações que possam orientar o funcionamento futuro dessa ação afirmativa.

. São esses, os maiores interessados e comprometidos com a lei de cotas, como o Consórcio das Ações Afirmativas (CCA), criado exclusivamente para gerar dados e análises sobre as cotas. E não é pelo receio de que ela acabe, porque nesse momento, o governo não pode simplesmente acabar com a lei. Mas é necessário uma avaliação criteriosa dos impactos trazidos para a população, já que se trata de uma política pública. 

O que essas análises e dados mostram como pontos de necessidade para a revisão, são o desempenho, a evasão e o investimento para permanência desses estudantes. Mas existe um grande desafio, percebido na maioria das instituições, que se trata da sensação do não pertencimento a esse espaço acadêmico. 

Os beneficiários da lei, na maioria das vezes, permanecem, conseguem melhorar seus desempenhos, mas, ainda sim, é um período e um processo muito burocrático e discriminatório. Então, o investimento precisa acontecer nas condições materiais, mas, também, nas condições simbólicas de pertencimento nessas universidades. Outros pontos importantes estão ligados às transparências dos dados, ampliação das vagas para os grupos de quilombolas, indígenas e Pessoas com Deficiência (PcD), levando em consideração que são três grupos específicos que não conseguem uma inclusão devida, além da atenção ao recorte de renda. 

Os avanços no sistema educacional precisam ser fortalecidos a todo momento, sabemos que além das cotas, o investimento na educação perpassa desde uma pré-escola de qualidade até o melhoramento dos recursos nas escolas públicas para que mais estudantes consigam chegar em situações menos desiguais na universidade. Contudo, graças à luta principalmente do movimento negro, o acesso ao ensino superior público aumentou e alterou perspectivas da juventude.

 

Autora: Lígia Alves – Professora da rede pública estadual de ensino, coordenadora geral da UNEGRO Caxias-MA, secretária e articuladora do Instituto Valdenia Menegon

 

Referências

BORGES, Thiago. 10 anos da Lei de Cotas: política pública que mudou a cara das universidades precisa ser mantida e melhorada. Periferia em Movimento. 15 de Agosto de 2022. Disponível em: https://periferiaemmovimento.com.br/10anosdecotas082022/. Acesso em 16 de Outubro de 2022.

 

BRASIL. Lei Nº 12.711, de 29 de agosto de 2012. Diário Oficial [da] União, Poder Executivo, Brasília, DF, 30 de agosto de 2012. Página 1 (Publicação Original). Seção 1, p. 29514. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/2012/lei-12711-29-agosto-2012-774113-publicacaooriginal-137498-pl.ht. Acesso em 17 de outubro de 2022.

 

Passado e Futuro da Lei de Cotas, 10 anos depois. [SPOTIFY]: Nome dos locutores: Magé Flores e Maurício Meirelles. Produção: Jéssica Maes, Laia Mouallem e Victor Lacombe. 30 de agosto de 2022. Podcast Café da Manhã. Disponível em: https://open.spotify.com/episode/7HdXe4GdwUAd7HeEZhuYTS?si=itnmzieDSdKXis9KjV_oTA. Acesso em: 27 de setembro de 2022.

 

OLIVEIRA, Andressa. NUNES, Eduardo. Dez anos da Lei de Cotas, 522 anos de lutas. PerifaConnection. 02 de Maio de 2022. Disponível em: https://www.geledes.org.br/dez-anos-da-lei-de-cotas-522-anos-de-lutas/. Acesso em: 15 de outubro de 2022.

plugins premium WordPress