Por Valdenia Menegon

Co-autora: Lígia Alves

Acompanhe essa série composta por três artigos e entenda a relação entre Identidade Negra, Letramento Racial e Heteroidentificação

Parte 2 – Do racismo ao Letramento Racial

Neide de Almeida (2017) afirma que ler e escrever vai além de apenas compreender uma língua e seu funcionamento, mas ainda, entender como leitura e escrita são utilizadas, em quais contextos se darão as práticas e como as pessoas serão afetadas por essas experiências. Desse modo, é importante destacar que somos sujeitos com múltiplas diferenças e experiências e que tecemos nossas narrativas a partir das nossas próprias existências.

Nos processos de aquilombamentos que estamos realizando, inclusive nos encontros do Grupo de Pesquisa Ativista Audre Lorde, da Universidade Federal de Rondônia, temos chamado a atenção para o fato de que precisamos falar sobre o privilégio de ser branco no Brasil. Em um país que normaliza a morte cotidiana da população negra seja física ou epistemológica, é preciso tratar sobre como o racismo estrutura as relações entre os diferentes sujeitos e como a branquitude, enquanto sistema de poder, racializa negros e brancos de forma diferente.

Racismo se trata de um sistema de poder e opressão que se baseia nas características físicas para justificar exploração, opressão, segregação e até escravidão e extermínio de pessoas. Vários fatores desencadeiam o racismo, e todos eles tem como base a ideologia de superioridade.

 

O período de escravidão é o exemplo mais representativo de como o racismo estrutura nossa sociedade, pois mesmo com o processo de abolição, essa “liberdade” foi dada a própria sorte, sem garantias de trabalho, educação, segurança, alimentação. Ao contrário, após a abolição desenvolveu-se no Brasil uma política estatal que pode ser considerada um processo de marginalização e genocídio do povo negro.

 

Sendo um sistema de poder, ele está além do preconceito e da discriminação e se baseia na lógica da branquitude, isto é, a estrutura de poder que garante privilégios às pessoas brancas. De acordo com Franz Fanon, os brancos criaram os negros (no sentido de negativar suas características físicas e culturais) e os negros criaram a negritude, que em hipótese alguma trata-se de um sistema de poder, mas de reconhecimento da sua ancestralidade, história, cultura e estética.

O racismo é uma estrutura tão forte que perpassa toda a nossa existência. Está na família, na religião, na escola, na justiça, na mídia, na economia, na política e nos afetos. Os brancos precisam reconhecer que não precisam, necessariamente, se preocupar em carregar ou não documentos com eles(as), que não têm problemas em entrar nos espaços e serem barrados ou seguidos por seguranças em lojas e shoppings.

Enquanto lugar de privilégio racial, econômico, territorial, político e cultural, a branquitude define a sociedade, tornando-se norma, o que impacta diretamente sobre a identidade tanto de uma pessoa negra como de uma pessoa branca.

Nós somos induzidos a pensar o negro como inferior. Por outro lado, é difícil pessoas brancas se entenderem como privilegiadas. Ao contrário, persistem os discursos que fortalecem a primazia da meritocracia, da inteligência individual e do esforço para o alcance do sucesso.

É aquela ideia: “trabalhe enquanto eles se divertem”, ‘estude enquanto eles dormem”, uma falácia que esconde as desigualdades raciais, de classe, de deficiência e gênero. Diante do não sucesso, persiste a imposição da culpa pelo fracasso, desemprego ao próprio sujeito que é vítima de todo um sistema que o excluí e discrimina.

No Brasil, esse debate é muito complexo, pois persiste a negação da existência do racismo, de não ver a cor das pessoas e do mito da democracia racial. Esse discurso é feito pelo próprio estado brasileiro.

É preciso discutir a branquitude; mesmo as questões de classe não estão desvinculadas do racismo: um pobre branco, ainda carrega os privilégios da branquitude. É possível dizer que a pobreza tem cor no Brasil, porém o que vale dizer é que existe uma racialização da pobreza no Brasil.

O conceito de letramento racial nos faz verificar como a racialização estabelece direitos e lugares hierarquicamente estipulados para brancos, negros, indígenas. A presença de pessoas brancas ocupando a maior parte dos cargos de poder e decisão foi tão normalizada, que isso se fez regra, nos fazendo acreditar que essa é natural.

 

A branquitude organizou um formato que faz parecer que a identidade racial branca, tomada para si, é sempre lida como um valor positivo, enquanto valores e estáticas não brancos, são negativados.

 

O conceito de branquitude nos conduz ao letramento racial, que, segundo Aparecida de Jesus Ferreira (2019), diz respeito aos “sentidos atribuídos às identidades raciais de negros e de brancos”. É o modo como a gente se lê e lê os outros. É a leitura que se faz a partir das próprias experiências.

Letramento racial se alicerça na Teoria Racial Crítica desenvolvida por Gloria Ladson-Billings. Esta Teoria usa raça como ponto de partida para a análise na
pesquisa educacional, o que não significa dizer que ela desconsidera as questões de gênero e de classe, mas que elas estão entremeadas.

Assim como o mulherismo africana de Clenora Hudson (2020), a Teoria Racial Crítica traz a raça como ponto central para a análise. Sem desmerecer outras variáveis, raça é basilar nos processos que constituem a sociedade. Desse modo, o letramento racial nos faz repensar raça como uma ferramenta utilizada para o exercício do controle
social, cultural, territorial e econômico de brancos e negros.

Estudiosos que se baseiam na abordagem da Teoria Racial Crítica, principalmente através do uso de contar histórias, contranarrativas e histórias não hegemônicas, alicerçam seus estudos a partir de cinco princípios básicos, quais sejam: a intercentricidade de raça e racismo, isto é, a compreensão de que estes dois fenômenos são endêmicos e permanentes na sociedade e que estas se entrelaçam com outras formas de subalternidades a partir do gênero, classe, sexualidade, linguagem, cultura, imigração, entre outras; o desafio à ideologia dominante; o compromisso com a justiça social;  a perspectiva interdisciplinar e; a centralidade do conhecimento experiencial.

Esses princípios são fundamentais para quem trabalha com a educação, já que a partir da escuta dos seus alunos e alunas, professores podem perceber as diversas experiências vivenciadas pelo grupo e preparar suas atividades.

Cada história contada por nossos alunos e alunas, refletem, na verdade, uma construção coletiva de suas vivências enquanto sujeitos periféricos e de maioria negra. As falas não são meramente produções individuais, mas estão carregadas de manifestações culturais e ideológicas que a educação precisa se embasar.

 

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Neide. Letramento racial: um desafio para todos nós. Portal Geledés. Disponível em: https://www.geledes.org.br/letramento-racial-um-desafio-para-todos-nos-por-neide-de-almeida/. Acesso em 10 de novembro de 2021.

BRASIL/MPDG. Portaria Normativa nº 4, de 6 de abril de 2018. Regulamenta o procedimentos de
heteroidentificação. Disponível em: https://goo.gl/YzUfZ8. Acesso em 15 de março de 2021.

FERREIRA, Aparecida de Jesus e BARBOSA. Entrevista com Aparecida de Jesus Ferreira. Revista X, Curitiba, v.14, n.3, p. 1-15, 2019. Disponível em: file:///C:/Users/Usuario/AppData/Local/Temp/67684-268784-1-PB.pdf. Acesso em 11 de novembro de 2021.

FERREIRA, Aparecida de Jesus. Letramento racial crítico através de narrativas autobiográficas: com atividades reflexivas. Ponta Grossa: Estúdio Texto, 2015.

 

PEREIRA, Ariovaldo Lopes e LACERDA, Simei Silva Pereira de. Letramento racial crítico: uma narrativa autobiográfica. In Travessias, Cascavel, v.13, n.3, p. 90-06, set./dez. 2019. Disponível em: https://erevista.unioeste.br/index.php/travessias/article/view/23612/15045. Acesso em: 10 de novembro de 2021.

KILOMBA, Grada. Memórias da Plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobodó: 2020.

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