Por Valdenia Menegon

Co-autora: Lígia Alves

Acompanhe essa série composta por três artigos e entenda a relação entre Identidade Negra, Letramento Racial e Heteroidentificação

Parte 3 e última – Como funcionam as comissões de heteroidentificação?

Conhecida como lei das cotas, a lei 12.711/2012 (BRASIL, 2012) completou, esse ano, 10 anos de vigência. Nos últimos anos, pesquisas e estudos diversos foram realizados no sentido de compreender os efeitos dessa política de ação afirmativa, com isso, tem-se pensado em estratégias a fim de remediar os desafios enfrentados até então.

A criação das comissões de heteroidentificação é uma dessas estratégias. Elas devem passar pela formação permanente de seus membros, a partir da perspectiva do letramento racial e, tendo como mote, que as políticas de ações afirmativas são entendidas enquanto: “medidas que, conscientes da situação de discriminação vivida por certos indivíduos e grupos, visam a combater tal injustiça, por meio da adoção de medidas concretas e benéficas (Rios, 2008, p.156).

Lembrando que as comissões de heteroidentificação fazem parte de um processo anterior à sua atividade, que os indivíduos já fizeram sua autodeclaração, sendo a heteroidentificação quando outras pessoas declaram a cor dos indivíduos.

No Brasil, as pessoas podem se autodeclarar brancas, pretas, pardas, amarelos e indígenas. Brancas são aquelas pessoas lidas como brancas (independente se seus ancestrais sejam negros ou não). As autodeclaradas amarelas são de origem asiática e as indígenas são aquelas que pertencem a alguma etnia indígena. Já pessoas negras, são aquelas autodeclaradas pretas ou pardas. Essa última definição é relevante, já que formamos a maior população negra fora do continente africano.

 

Essa conceituação é necessária, na medida em que a Portaria Normativa nº 4, de 6 de abril de 2018 estipula em seu Art. 5º que: “Considera-se procedimento de heteroidentificação a identificação por terceiros da condição autodeclarada” e no Art. 9º que “A comissão de heteroidentificação utilizará exclusivamente o critério fenotípico para aferição da condição declarada pelo candidato no concurso público”.

 

Destinada a pretos, pardos, indígenas e pessoas com deficiências, as políticas de ações afirmativas buscam reparar as atrocidades e privações impostas a essa população. Desde a década de 1970, estudos sociológicos apontaram, estatisticamente, que os danos provocados pelo racismo persistiam e que suas implicações estavam, mais do que nunca, presentes na sociedade brasileira.

O argumento em prol da heteroidentificação está mobilizado no sentido de coibir as ações fraudulentas que fazem uso da autodeclaração de maneira  indevida  violando os objetivos  da  legislação  federal. Não se pretende que o procedimento de heteroidentificação seja tomado como um mecanismo de dizer sobre os aspectos subjetivos que identificam os sujeitos.

São políticas necessárias diante do racismo estrutural e institucional que recobre o tecido social brasileiro. Estando em permanente dinâmica, representam mais do que simples indenização pecuniária, mas buscam proporcionar condições para o enfrentamento da marca de inferioridade carregada pela comunidade negra no Brasil.

Membros das comissões de heteroidentificação devem ter, portanto, o compromisso pessoal e social de reconhecer-se como sujeito privilegiado, se branco for, e buscar contribuir com a superação do racismo. Membros não brancos devem ter como premissa uma leitura de si mesmo e de mundo que seja voltada para o fortalecimento da sua própria identidade e do auxílio daqueles e daquelas que são vítimas de um sistema que assola vidas negras.

Por fim, reafirmar os dizeres de Grada Kilomba de que é urgente a criação de uma nova linguagem, portanto, de um novo letramento. Escrever, para mim, mais do que nunca, deve ser um ato político. Aquilombar com os meus irmãos e irmãs negras é de máxima urgência. Potencializar meninos e meninas negras, matrigestar a comunidade e sulear meus passos com afeto e solidariedade é o que conduz minha existência.

 

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Neide. Letramento racial: um desafio para todos nós. Portal Geledés. Disponível em: https://www.geledes.org.br/letramento-racial-um-desafio-para-todos-nos-por-neide-de-almeida/. Acesso em 10 de novembro de 2021.

BRASIL. Lei nº. 13.40,09, de 28 de dezembro de 2016. Altera a Lei no12.711, de 29 de agosto de 2012, para dispor sobre a reserva de vagas para pessoas com deficiência nos cursos técnico de nível médio e superior das instituições federais de ensino. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/lei/l13409.htm. Acesso em 15 de março de 2021.

BRASIL/MPDG. Portaria Normativa nº 4, de 6 de abril de 2018. Regulamenta o procedimentos de heteroidentificação. Disponível em: https://goo.gl/YzUfZ8. Acesso em 15 de março de 2021.

FERREIRA, Aparecida de Jesus e BARBOSA. Entrevista com Aparecida de Jesus Ferreira. Revista X, Curitiba, v.14, n.3, p. 1-15, 2019. Disponível em: file:///C:/Users/Usuario/AppData/Local/Temp/67684-268784-1-PB.pdf. Acesso em 11 de novembro de 2021.

FERREIRA, Aparecida de Jesus. Letramento racial crítico através de narrativas autobiográficas: com atividades reflexivas. Ponta Grossa: Estúdio Texto, 2015.

KILOMBA, Grada. Memórias da Plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobodó: 2020.

PEREIRA, Ariovaldo Lopes e LACERDA, Simei Silva Pereira de. Letramento racial crítico: uma narrativa autobiográfica. In Travessias, Cascavel, v.13, n.3, p. 90-06, set./dez. 2019. Disponível em: https://erevista.unioeste.br/index.php/travessias/article/view/23612/15045. Acesso em: 10 de novembro de 2021.

  1. 5 n. 9 (2020): V DOSSIÊ “As Comissões de Heteroidentificação Étnico-Racial de Autodeclaração no Sistema de Cotas para negros e negras: divergências, convergências e efetividade” Orgs: Adilson Pereira dos Santos; Lígia dos Santos Ferreira. Disponível em: http://costalima.ufrrj.br/index.php. Acesso em 15 de março de 2021.
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