Por Valdenia Menegon

Acompanhe essa série composta por três artigos e venha entender a relação
entre Identidade Negra, Letramento Racial e Heteroidentificação

Parte 1 – O negro e sua identidade

Quando fui instigada a escrever sobre comissões de heteroidentificação, logo
me veio à mente o modo como somos lidos socialmente. Sendo eu, uma mulher
negra, profissional da educação e ativista do movimento negro e de mulheres,
pensei em como poderia contribuir para o debate.

Grada Kilomba em “Memórias da Plantação: episódios de racismo cotidiano”
(2020), nos faz refletir no modo como cada palavra que usamos define o lugar
da nossa identidade. Grada nos alerta para o fato de que algumas das nossas
identidades são retiradas da nossa subjetividade e reduzidas a uma existência
objetificada, que é descrita e representada por aqueles que dominam. Isso
acontece, por exemplo:

Na ideia de que mulheres constituem o sexo frágil ou ainda o discurso construído e perpetuado no Brasil e em outras partes do mundo da inferioridade do povo negro pela sua cor.

O negro foi associado a uma história de violência e desumanização, afinal,
durante o período escravocrata fomos transformados em objetos, coisas,
viramos mercadoria. Esse processo foi tão cruel porque, acima de tudo, buscava
negar a nossa humanidade, os nossos afetos, a nossa cultura, a nossa medicina,
dentre tantos outros saberes e práticas.

Entretanto, vale a pena relembrar como a própria literatura, também, perpetuou
esses aspectos da história da identidade negra. A forma como o conhecimento
produzido pelos sujeitos negros é recebido: atividade folclórica e de
entretenimento e raramente como cultura; expressões de emotividade e
raramente como conhecimento puro. Há pouco tempo, de fato, temos consumido
conhecimento feito e protagonizado por pessoas negras.

Grande parte do que não foi renegado, foi apropriado pelo colonizador, inclusive
nossa identidade. Um verdadeiro processo de desumanização em um país que
foi estruturado na escravidão e na hierarquização racial de corpos.

Os dados apresentados na série histórica do Atlas da Violência, produzido pelo
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), aponta para um processo
sistemático e permanente de execução da população negra, onde o perfil dos
indivíduos com mais probabilidade de morte violenta intencional no Brasil
é composto por homem jovem, solteiro, negro, com até sete anos de estudo
e que esteja na rua nos meses mais quentes do ano entre 18h e 22h. Os
homicídios respondem por 59,1% dos óbitos de homens entre 15 a 19 anos
no país. (IPEA/ATLAS DA VIOLÊNCIA, 2019)

Além das mortes violentas apresentadas, negros e negras ainda morrem pela
ausência de acesso à saúde, condições básicas de higiene, além de estarem
nas piores condições de acesso e permanência ao mercado de trabalho e às
universidades. Afora tudo isso, com a explosão da pandemia da Covid-19, a
população negra foi, também, a mais afetada. Não foi à toa que a primeira vítima
fatal do novo coronavírus no Rio de Janeiro, foi uma mulher negra, empregada
doméstica que contraiu a doença através dos seus patrões que haviam chegado
de uma viagem ao exterior.

Em São Paulo, um levantamento feito pelo Mapa da Desigualdade apontou que
negros morreram quase duas vezes mais do que brancos no estado, mesmo
considerando os bairros mais ricos da capital.

A negação da própria identidade e a falta de segurança são dois elementos
essenciais para compreender como a nossa sociedade “lê” as pessoas negras.

O racismo, no Brasil, baseado na representação do negro ora como exótico-sensual, ora como exótico-violento, cria e criou condições de sobrevivência extremamente difíceis para os negros, pois com essa ideia de “democracia
racial”, “paraíso tropical”, como conceitua Roberto Gambini (2000), temos
dificuldade em reconhecer o que é considerado racismo e o que é considerado
não tão racista assim, o que é considerado discriminação e o que é considerado
não tão discriminatório assim.

Desta forma, é de se entender que parte da sobrevivência psíquica de muitos
negros se vincule à busca de ser aceito fugindo do que é rejeitado. É de se
entender por que o negro queira ser branco.

Continua na parte 2…

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Neide. Letramento racial: um desafio para todos nós. Portal Geledés. Disponível em: https://www.geledes.org.br/letramento-racial-um-desafio-para-todos-nos-por-neide-de-almeida/. Acesso em 10 de novembro de 2021.

BRASIL/MPDG. Portaria Normativa nº 4, de 6 de abril de 2018. Regulamenta o procedimentos de heteroidentificação. Disponível em: https://goo.gl/YzUfZ8. Acesso em 15 de março de 2021.

FERREIRA, Aparecida de Jesus e BARBOSA. Entrevista com Aparecida de Jesus Ferreira. Revista X, Curitiba, v.14, n.3, p. 1-15, 2019. Disponível em: zfile:///C:/Users/Usuario/AppData/Local/Temp/67684-268784-1-PB.pdf. Acesso em 11 de novembro de 2021.

FERREIRA, Aparecida de Jesus. Letramento racial crítico através de narrativas autobiográficas: com atividades reflexivas. Ponta Grossa: Estúdio Texto, 2015.

PEREIRA, Ariovaldo Lopes e LACERDA, Simei Silva Pereira de. Letramento racial crítico: uma narrativa autobiográfica. In Travessias, Cascavel, v.13, n.3, p. 90-06, set./dez. 2019. Disponível em:
https://erevista.unioeste.br/index.php/travessias/article/view/23612/15045. Acesso em: 10 de novembro de 2021.

KILOMBA, Grada. Memórias da Plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobodó: 2020.

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