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Savio Roz

10/07/2023

Maria Felipa: Representação e Representatividade

O inventado grito de Pedro I para a separação do Brasil de Portugal não foi um brado tão imponente diante da guerra de expulsão ocorrida no entorno de Salvador, capital da Bahia. Com as comemorações dos 200 anos da Independência do Brasil na Bahia, em 2 de julho, e o vislumbre do público brasileiro pela exibição da mídia, vimos o evento histórico se destacar no debate público entre os meses de junho e julho de 2023. Dentre os diversos temas que foram resgatados pela historiografia baiana, Maria Felipa, mulher negra, por demandas raciais e de gênero, faz-se significante. Orbitam em sua imagem e memória os astros da Representação e da Representatividade.

Três mulheres tiveram destaque na construção narrativa desse passado pela historiografia baiana: Joana Angélica, Maria Quitéria e Maria Felipa. Cada uma dessas atrizes históricas do evento separatista protagonizou etapas importantes para o desfecho bem-sucedido. Porém, convém perceber que as preservações das memórias de suas existências seguiram caminhos distintos em acordo com questões sociais e políticas próprias. Pelo martírio, a religião católica e sua liderança valorizaram a imagem e importância de Joana Angélica no processo, enquanto a elite política e militar, dentre tantos homenageados, honrou de medalhas e escolhida tutela de patrona a Maria Quitéria, enquanto, por questões próprias, Maria Felipa tateia entre oralidades e memórias resistentes nas neblinas do esquecimento.

Nem todos os caminhos de resistência da memória são através das fontes mais convencionalmente estipuladas, muitas vezes é preciso mudar a lente e o método. Principalmente em casos em que o esquecer foi produzido, intencionalmente ou não, em dado contexto. Os fragmentos surgem nas lembranças da participação da região do recôncavo e da centralidade da Ilha de Itaparica nos conflitos de libertação. Nestes cenários, batalhas ocorreram entre as forças portuguesas e sua arbitrária ocupação contra a rebeldia dos populares. Como com outros personagens e eventos, sua persistência ancora-se no anseio popular, mas diferentemente não há, ainda, uma sustentação documental de sua persona. Para existir, foi na comunhão entre História e Ficção que encontrou sua sobrevida, chegando até nós nas imperfeições ocasionais ao abandono e, muito provavelmente, ao apagamento, por intenção ou desprezo das forças hegemônicas marcadas por racismo e machismo.

Relatos sobreviveram por vontade popular pelos mecanismos que lhe foram possíveis e eles nos dizem muito sobre esse passado e seus participantes. Na narrativa a que nos dispomos, Maria Felipa e outras mulheres, entre escravizadas e forras, ou seja, libertas, em sua maioria marisqueiras, protagonizaram confrontos de grande inventividade: seduziam os marinheiros portugueses a saírem de seus postos, faziam uso do conhecimento sobre plantas urticárias para serem usadas como arma, no ataque de 7 de janeiro de 1823. A essas narrativas somam-se as embarcações por elas incendiadas, sob liderança de Maria Felipa. A grande crise está na historiografia que, atuante no empenho de encontrar fontes e metodologias eficazes, assume dificuldades em sustentar os relatos em uma documentação. No livro Maria Felipa de Oliveira – Heroína da Independência da Bahia, de 2010, a professora educadora Eny Kleyde Vasconcelos Farias comenta sobre a questão.

Sem o respaldo memorialista do Estado, da Igreja ou das forças armadas, a representação de Maria Felipa sobreviveu através dos empréstimos assumidos da oralidade. Neste jogo de memórias e transmissões orais, foram as narrativas ficcionais que absorveram o contexto e os carregaram de louros. No romance histórico O Sargento Pedro, Xavier Marques descreve eventos e personagens da guerra de independência, e tem ali a construção descritiva, de física materialização, da figura de Maria Felipa. O próprio autor diz sustentar a presença e imagem de Maria Felipa em duas outras obras: Memória Histórica e Política da (Província) Bahia, de Ignacio Accioli, e Memória Histórica sobre as Victorias Alcançadas pelos Itaparicanos, de Bernardino Ferreira Nóbrega, produzidas pouco tempo após os eventos.

E se as pessoas nativas da Ilha de Itaparica transmitiram através de diversos meios as memórias sobre Maria Felipa, o trabalho memorialista incumbe-se de sua redação. A importância do dizer, do relatar, os valores presentes na narração popular, encontra na pretensão dos memorialistas de fazer seguir ou promover sua vivacidade. Foi o caso da obra A Ilha de Itaparica: História e Tradição, em quatro volumes, escrita por Ubaldo Osório Pimentel, e publicada em 1974. Tão fascinado pela aguerrida Maria Felipa que, o autor, nomeou sua filha com este nome, Maria Filipa Osório Pimentel, que posteriormente deu à luz a seu neto célebre: João Ubaldo Ribeiro. Enquanto a formalidade historiográfica busca mais vestígios que sustentem sua existência, Maria Felipa mora na vontade popular de se ver em uma personagem protegida em tais reminiscências.

Podemos conjecturar que Maria Felipa sirva como representação modelar das presenças de mulheres negras, libertas ou não, no processo histórico de independência. Aqui não cabe, vejamos, o debate sobre sua existência amparado em registros documentais, mas nas assumidas intenções da memória. Ainda que as informações e descrições percam elementos ou ganhem adornos criativos em suas aventuras orais, elas sustentam a convicção de que o conflito não foi o arrojo exclusivo de másculos e viris heróis brancos, nomeados ou anônimos, mas de categorias sociais tão diversas que comportam uma negritude feminina. Se não nos trazem a solidez, ainda, de uma Maria Felipa, nos permite confirmar a representatividade tão cara às questões de gênero e raça de nossa contemporaneidade.

Nas festividades, nos desfiles, é possível vislumbrar, nos salões os retratos e quadros oficiosos, nas apropriações e adaptações populares, as imagens das três mulheres. A soror Joana Angélica e a guerrilheira Maria Quitéria receberam o patronato para que fossem desenhadas e pintadas. Tornou-se bastante comum que Maria Felipa, na ausência de representações figurativas, visuais, artísticas, fosse apresentada na fotografia de uma mulher negra de turbante, com um semblante vigoroso. Trata-se de um retrato produzido pelo fotógrafo Alberto Henschel em 1870 de título Mulher de Turbante. Mais recente, porém, é o exercício imaginativo da perita técnica Filomena Maria Marques Modesto Orge, que por convite produziu um retrato falado de Maria Felipa em 2005, valendo-se das descrições presentes em Xavier Marques e Ubaldo Osório Pimentel.

Em todo caso, na impossibilidade de uma fidelidade, é pertinente e igualmente valorosa a representatividade. Tanto nos registros fragmentários e nas ficcionalidades, quanto nas criações artísticas e visuais, é a representatividade que se faz latente, percebendo que essas existências atravessadas de marcadores raciais e de gênero encontraram em Maria Felipa a salva-vidas do naufrágio do esquecimento. Enquanto não temos ainda bons alicerces de fontes, Maria Felipa é uma possibilidade. E tal possibilidade não se limita à potencialidade de sua existência concreta, mas da efetividade da resistência de uma delimitada população minoritária, de mulheres negras, que estavam presentes nos conflitos e querem sua presença nas comemorações.

 

Texto produzido e enviado pelo historiador, Savio Queiroz Lima (Savio Roz)

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