O presente artigo faz parte de um compilado de escritos que têm como foco a compreensão do matriarcado africano e como sua influência está presente nos territórios de Umbanda e Candomblé no Brasil. A ideia é fazer uma análise de como mães de terreiro ou mães de santo desenvolvem suas lideranças em seus territórios sagrados, carregando marcadores por serem dotadas de corpos femininos, vivendo em diáspora e em permanente movimento.

Diáspora africana é o termo dado ao movimento caracterizado pela imigração forçada de pessoas africanas durante o tráfico transatlântico entre diferentes regiões do continente africano para várias partes do mundo, incluindo as Américas. Entre meados do século XVI até o ano de 1850, quando o tráfico de pessoas foi oficialmente abolido pela Lei Eusébio de Queiroz, as estimativas apontam que entre 3.300.000 e 8.000.000 de pessoas fizeram a travessia do Atlântico de maneira compulsória, desembarcando no Brasil, onde eram vendidas como escravas.

De acordo com Beatriz Nascimento (1989), essa travessia transatlântica trouxe muito mais que corpos. Juntos vieram, culturas, formas de pensamentos, sabedorias ancestrais, modos de vida, práticas religiosas, línguas, conhecimentos em variadas áreas e formas de organização política e econômica que acabaram por influenciar na construção das sociedades às quais os africanos tiveram como destino, no caso brasileiro, a formação de uma sociedade transatlântica, com forte influência da cultura desses povos. 

Dentre essas influências, está o modo como esses povos lidam com a terra, a religiosidade de matriz africana, os ritmos, batuques e a organização política do quilombo. Essa última, que, ao longo do tempo recebe novas significações, deixando de ser apenas um processo territorial, podendo ser encontrada no modo de vida das favelas, nas escolas de samba e nos terreiros de Umbanda, Candomblé, Terecô e outras expressões de religiosidade africana.

Em contraposição às formas de organzição de matriz africana, a dinâmica social ocidental estabelece como instituições responsáveis pela formação das pessoas; a família, a igreja, a escola e o Estado, sendo esses considerados os pilares para a construção do “bom caráter” – e, este por seu turno, é intimamente atrelado ao molde da moral e da ética eurocêntrica, branca e heteronormativa. 

A construção de gênero no ocidente coloca a figura da mulher/mãe como cumpridora da subordinação e inferioridade ao sexo masculino. Assim, na perspectiva da sociedade, o corpo feminino se resume ao papel determinante que a limita ao lar, aos filhos e ser a esposa de um homem. Outro caminho não pode existir, é um destino traçado. Enquanto ao homem, existe a possibilidade e capacidade de desbravar, sem a sua completude estar ligada ao fato de ter filhos ou ser marido de alguém. 

Por um caminho inverso, nas religiões de origens africanas, das tradições mais antigas às atuais, a mulher é um corpo em movimento, livre e orientado pelo espírito. E nessa direção, Oyeronke Oyewumi (2021) compartilha que em sociedades iorubás, a figura feminina, por ter a capacidade de conceber a vida, é entendida como uma entidade, divindade co-criadora como Olodumaré (força da criação). O poder criador está nas mãos de Ìyá(mãe). Isso não resume a mulher a um corpo apenas sagrado, mas como responsável por trazer Orí(cabeça/pessoa) ao mundo, esse poder independe da ação do sexo masculino. 

A mãe de terreiro é um corpo fértil que ultrapassa as dimensões de tempo e materialidade, pois até o último suspiro é força criadora, que produz vida sem necessariamente estar ligada intimamente à figura masculina. É a mulher que constrói seu império, em grande parte, exclusivamente, a partir do comprometimento com a espiritualidade. Essa espiritualidade se torna a prioridade de sua existência, tendo direcionado seus esforços para essa realidade, ela então é a “mãe de muitos orís”.

A liderança de mães de terreiros as converte em protagonistas de uma história que se vincula às dimensões do espírito e da racionalidade, sendo também aquelas que estão na linha de frente do enfrentamento ao racismo religioso, além da manutenção da ética e dos cultos que celebram. Não apenas os orixás, mas quem mantêm viva a chama da ancestralidade e dos valores trazidos de África. 

Uma das funções da mãe de terreiro é a manutenção da comunidade e, nesse sentido, “A comunidade é o espírito, a luz-guia da tribo, é onde as pessoas se reúnem para realizar um objetivo específico, para ajudarem os outros a realizarem seu propósito  e para cuidar umas das outras” (Sobonfu Somé, 2003, p. 35). Apesar da existência de cargos hierarquizados, o distanciamento entre os que ocupam algum cargo de poder e os demais componentes da comunidade, é mínimo. Alí, no espaço da tenda, as pessoas estão conectadas e, por isso, cada um/a precisa exercer o trabalho, seja na cozinha, na aquisição dos alimentos, na limpeza do espaço, nos rituais, no cuidado com as vestimentas, tudo sob a coordenação da mãe, a guia da sua comuna. Ser mãe de terreiro implica o cuidado com o “nosso” e a potencialização dos membros da comunidade. Sem a comunidade, não existimos. “Quando você não tem uma comunidade, não é ouvido; não tem um lugar em que possa ir e sentir que realmente pertence a ele; não tem pessoas para afirmar quem você é e ajudá-lo a expressar seus dons” (Sobonfu Somé, 2003, p. 35)

Assim como os Dagara nos ensinam, no terreiro, o poder deve ser exercido de maneira coletiva e isso depende do modo como a mãe exerce seu matriarcado. O exercício do poder por esses corpos traz na base a ideia de partilha, potencialização e solidariedade, além de serem guardiãs dos ensinamentos ancestrais. No espaço da tenda, a mãe exerce a sua maternagem independente de seus filhos e filhas sejam uterinos ou não. São guardiãs da palavra, da manutenção da história e da memória do seu povo. Como as filosofias africanas costumam alertar: são mulheres de um povo e não de um homem, como as mulheres são tratadas no Ocidente.

Diferente da educação regida e pragmática, na vivência de terreiro “é inútil esperar ensinamentos prontos e acabados de algum mestre, deve-se tratar de ir reunindo pacientemente, ao longo dos anos, os detalhes que recolhe aqui e ali” (Goldman 2005). É dessa forma, que entende-se a formação de conhecimento das grandes matriarcas de terreiros, que no mesmo processo se colocam disponíveis para compartilhar suas experiências e contribuir na formação da sociedade e na individualidade de cada ser que busca suas orientações.

No nordeste, em específico no Maranhão e Piauí, é comum encontrar diversas tendas, salões e terreiros, sendo de umbanda, mina ou terecô. Em sua maioria, são casas chefiadas por mulheres e contam com a parceria de outras mulheres. Uma grande rede é formada, mesmo cada casa tendo seus próprios fundamentos, ainda compartilham entre si festejos, obrigações e valores em comuns. A existência dessas mulheres nordestinas são essenciais para o resgate e manutenção dos princípios ancestrais africanos e indígenas, que são repassados através da oralidade e movimento do corpo, que mesmo sendo morada do tempo, não cede, preservando na memória os ensinamentos apreendidos no percurso da vida. 

É uma obrigação registrar a história das grandes matriarcas que estão em suas tendas, em seus quilombos, em suas favelas e roças, vivendo e produzindo vida, afinal, parafraseando mãe Stella de Oxóssi: “o que a gente não escreve, o tempo leva”. Grandes nomes como Lídia Alves da Silva, Maria do Carmo (in memoriam), Maria Pereira, mãe Elzita, Maria dos Remedios e  Maria Madalena precisam ser conhecidos como referências na educação popular que nasce do chão dos terreiros. Portanto, torna-se uma incumbência aos que estão no vigor da juventude apreender os conhecimentos abissais advindos dessas vivências para que seja possível construir uma sociedade que funcione com novas simbologias e valores de inclusão e partilha, para que ninguém seja deixado de fora dos processos. 

O caminho para transformar uma realidade de individualidade, competição, exclusão, má gestão de recursos naturais, da predominância do consumismo e da supervalorização do indivíduo em detrimento da comunidade, é olhar para dentro das aldeias, das comunidades quilombolas e para as casas de axés, onde há o círculo, a gira em movimento, o ritmo, a  integração com os semelhantes, com os diferentes e com a natureza. 

 

Autoras:

Valdenia Guimarães e Silva Menegon – Presidenta de Honra do Instituto Valdenia Menegon; Dra em História;

Geyciele Quezia Silva Dourado – Presidenta do Instituto Valdenia Menegon; graduanda em Serviço Social- UniFacema; Diretora Social da Tenda Espírita Nossa Senhora Conceição.

Revisão: 

Lígia Emanuela Costa Alves – Secretária do Instituto Valdenia Menegon; Graduada em Letras/Inglês (CESC/UEMA); Professora (SEDUC MA).




REFERÊNCIAS: 

GOLDMAN, Márcio. Formas do saber e modos do ser: observações sobre a multiplicidade e ontologia no Candomblé. Religião e Sociedade, 25 (2): 102-120, 2005.

NASCIMENTO, Beatriz e GARBER, Raquel. Orí (documentário). 1989. 

OYĚWÙMÍ, Oyèrónkẹ. A invenção das mulheres: construindo um sentido africano para os discursos ocidentais de gênero. 1. ed. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021.

OYĚWÙMÍ, Oyèrónkẹ́. Matripotency: Ìyá philosophical concepts and sociopolitical institutions. What Gender is Motherhood? Nova Iorque: Palgrave Macmillan, 2016, capítulo 3, p. 57-92,  tradução Wanderson Flor do Nascimento.

SOMÉ, Sobonfu. O Espírito da Intimidade. São Paulo: Odysseus, 2003.

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