Maria de Macedo foi uma mulher negra vítima de um crime violento. Isso por si, ainda hoje, parece um corriqueiro absurdo, talvez condizente com um passado retrógrado. Mas mesmo esse passado já tido por obsoleto, tinha suas regras morais, mas que o caso de Maria de Macedo nos indica que eram regras que não atendiam a todos no quesito gênero, raça e classe, ou seja, eram regras condicionadas pela interseccionalidade. Tudo isso por conta da imagem do corpo mutilado de Maria de Macedo na mídia.
Trata-se do ano de 1892, na cidade do Rio de Janeiro, então capital da recente República. O jornal “A Revista Ilustrada” exibe na sua página final o desenho do corpo feminino esquartejado, como que depositado numa mesa de autópsia. A assombrosa imagem não tinha par naquele período, ainda que os leitores se saciassem com narrativas de crimes violentos. Uma criteriosa investigação não traz ilustração semelhante, dada a natureza da mídia sensacionalista e da violência urbana ali retratada.
Em dois momentos eu pude me defrontar com a terrível imagem daquele corpo de mulher negra exposto pelo jornal. Na primeira vez, em pesquisa produzida na graduação, usando o periódico como fonte primária, aquela imagem intrigou pela sádica exposição em um jornal de relativa circulação. Passados alguns anos, meus olhos reconheceram aqueles contornos e rachuras em uma revista produzida pelo Real Gabinete Português de Leitura, ilustrando um capítulo justamente sobre violência urbana na capital do país no final dos oitocentos. Não tem como não se assombrar com o esforço do artista de, a partir de uma foto, assumidamente, buscar o realismo cadavérico.
Mas é preciso entender as condições sociais para que uma mulher negra seja eleita como destituída de direitos de pudores. A exposição de seu corpo violado nos fala sobre os valores da sociedade brasileira do período, tão próximo da abolição, ainda muito enraizado no racismo valorizado pelo cientificismo, a pouco tempo do golpe que lhe transformou em uma República. A mídia reproduzia os discursos vindos do saber médico, do saber policial, inclusive repetindo seus discursos, para uma sociedade que permitiu uma abolição sem inserção da população negra, um golpe de Estado conservador que não mudou as disparidades de classe, e um moralismo que dividia as mulheres entre aquelas socialmente aceitáveis e as indigestas à tradição patriarcal.
Por isso a imagem de Maria de Macedo morta e desnuda foi reproduzida num periódico, bem diferente com outros corpos não negros. Diversas notícias de crimes se fizeram presentes em jornais da época, até mesmo na Revista Ilustrada, acompanhadas de ilustrações do fato, mas sempre prezando pelo pudor e pela discrição ao retratar categorias hegemonicamente protegidas. Mesmo as mulheres, brancas, subalternas nessa sociedade, traziam um ar romântico nas representações de suas mortes. Nenhuma despida de roupas ou de ética. O lugar interseccional de Maria de Macedo, de mulher sem marido, de mulher negra, de mulher pobre,
Sendo a outra, nas análises de Grada Kilomba e Lélia Gonzalez, Maria de Macedo é duplamente violentada. Assassinada por homens, seu corpo esquartejado é colocado num cesto abandonado no Largo do Depósito, nas proximidades do centro do Rio de Janeiro, poderia existir como mais uma violência perpetrada contra uma mulher, envolvendo a relação de poder que está ancorada em dinheiro e ciúme. Já não bastasse o violento ocorrido, a sua imagem é igualmente violentada pela arbitrariedade de exibi-la tão explicitamente na nudez e na morte, por ela existir em categorias de subalternidade que legitimam sua exploração desumanizada. Destituída de valores como ser mulher e ser humana, Maria de Macedo é um objeto exótico.
É preciso superar tanto a objetificação quanto a exposição, e com isso a naturalização da violência em camadas da interseccionalidade. Maria de Macedo deixa de ser apenas um objeto gráfico de deleite sádico e se torna a vítima de uma rede de violências que vão da física à simbólica que parecem operar em cooperação. Que a luta pela justiça de gênero, pela equidade sexual, nunca devem esquecer as interferências dos outros marcadores sociais, como raça e classe. Ser justo com Maria de Macedo é lhe devolver seu status de sujeita, de pessoa, negado pela representação visual. Se o passado não se retrata com Maria de Macedo, que o presente o faça evitando que outras Marias de Macedo possam existir corriqueiramente na mídia sensacionalista.
Artigo por “Savio Queiroz Lima” enviado para o Instituto Valdenia Menegon
Para saber mais:
LIMA, Savio Queiroz. A Cesta Mórbida de Maria de Macedo: Exposição do Corpo da Mulher Negra Esquartejada na Mídia Carioca no Século XIX. In: Anais do XVI Encontro Estadual de História – ANPUH-RS – História Agora: Ensinar, Pesquisar, Protagonizar, ANPUH-RS, 2022a. Acesso em 08 de janeiro de 2023. Disponível em: https://www.eeh2022.anpuh-rs.org.br/resources/anais/12/anpuh-rs-eeh2022/1659323292_ARQUIVO_cc75328ff87ba18631c43730fceef69c.pdf.