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Valdenia Menegon

17/08/2023

O encontro entre a África e o Maranhão: tráfico transatlântico e os lucros para o capital

O presente texto tem por objetivo fazer uma análise sobre o processo de escravidão negra no Maranhão, a partir das dinâmicas do tráfico pelo Atlântico. O tráfico de pessoas se constituiu como uma das bases para o capitalismo nascente e transformava pessoas em mercadorias, “coisificando-as”, tirando-lhes, de alguma forma, sua humanidade. Para pensarmos a escravidão a partir das dinâmicas do tráfico, necessitamos identificar os agentes responsáveis por ela, as ações necessárias para o seu desenvolvimento e os efeitos, diretos e indiretos, ocasionados nos grupos sociais envolvidos e nos territórios atravessados por essas dinâmicas.

A grosso modo, pode-se afirmar que o tráfico de pessoas pelo Atlântico constituiu-se como uma espécie de comércio abjeto, cujas mercadorias eram pessoas que, retiradas de suas vidas e espaços, eram lançadas ao mar para uma travessia sem volta. Esse comércio recebeu a anuência de estados, reis, igrejas, em um pacto onde a justificativa se valia tanto de explicações de ordem religiosa quanto “científica”. A instituição escravagista serviu para a consolidação de nações e reinados, e contribuiu para a transformação das estruturas sociais e políticas da época e mantém seus efeitos nefastos até a contemporaneidade. Afinal, o Brasil possui uma estrutura racial que subsidia todas as outras relações sociais.

A produção está dividida em uma parte introdutória, seguida de argumentação quanto às dinâmicas do tráfico, passando pelos territórios de origem das principais etnias que aportaram no Maranhão e quais instituições foram responsáveis pela estruturação da empresa escravocrata que uniu territórios africanos e o Maranhão. A base teórica do texto alicerça-se nas pesquisas feitas por Maria Celeste Gomes da Silva (2010), Maria Beatriz Nascimento (1989), Mário Meireles (1983), Patrícia Silveira (2010), Rafael Chambouleyron (2006), Reinaldo Barroso dos Santos Junior (2013), entre outros.

Na organização da dinâmica do tráfico negreiro, o comércio da mão-de-obra africana, de forma compulsória, gerou enormes lucros, pois o capital usado nesses empreendimentos eram privados e só eram possíveis através de contratos individuais ou de concessão de monopólios concedidos pela Coroa para alguma companhia e o retorno financeiro de Portugal se dava a partir da cobrança de impostos sobre a circulação de mercadorias e serviços. É possível afirmar que o tráfico transatlântico foi um dos maiores empreendimentos comerciais e de culturas que marcaram a formação da sociedade moderna.

Estima-se que durante todo o período do tráfico transatlântico, aproximadamente 11 milhões de africanos foram transportados para as Américas, dos quais, em torno de 5 a 6 milhões tiveram como destino o Brasil. De acordo com Beatriz Nascimento (2006), a travessia do Atlântico proporcionou a criação de uma sociedade transatlântica. O mar, mais precisamente o oceano Atlântico, foi um espaço de uma travessia no plano da alma (soul). Os numerosos corpos negros que atravessaram esse mar criaram uma sociedade transatlântica (Nascimento, 2006). Não uma sociedade negra simplesmente, mas uma sociedade que atravessa mares, que atravessa o oceano e que se mantém conectada a partir do compartilhamento de experiências.

Achille Mbebe (2018) ao tratar sobre o “negro” enquanto criação do capitalismo atlântico afirma que:

A escravidão atlântica foi o único complexo servil multi-hemisférico que chegou a fazer das pessoas de origem africana mercadorias. É nesse sentido que se trata da única a ter inventado o Negro, isto é, uma espécie de homem-coisa, homem-metal, homem-moeda, homem plástico. Foi nas Américas e no Caribe que os seres humanos foram transformados, pela primeira vez na história universal, em criptas vivas do capital. O Negro é o protótipo desse processo.

O Maranhão foi conectado às rotas comerciais do Atlântico desde a segunda metade do século XVII, quando documentos apontam a existência do cargo de Juiz da Saúde que existia em São Luís desde 1655 com a função de visitar os navios que chegavam com pessoas escravizadas (Mário Meireles,1983). No entanto, esse processo se deu de forma irregular e em pequenas quantidades. Esse dado pode indicar que a região já recebia mão-de-obra africana antes da ação da Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão a partir do século XVIII.

Antes desse processo, a escravidão indígena foi realizada como um mecanismo que se mostrou inviável tanto pela ação dos jesuítas quanto pela própria dinâmica indígena, afetados pelas doenças e também pelo enfrentamento à escravização, o que gerou conflitos e guerras.

Documentos apontam que durante os séculos XVI e XVII a mão de obra indígena foi predominante no Estado do Maranhão, mas isso não significa que ela tenha sido a única, pois há indícios da presença dos escravos africanos nesse Estado naquele período. Mesmo que não haja como indicar a data exata de chegada dos primeiros escravos africanos no Maranhão, alguns autores apontam que os ingleses conseguiram ainda no século XVII trazer africanos para esse território.

A necessidade de implementação do uso da mão-de-obra escrava africana no Maranhão se processou através do impacto ocasionado pela varíola que dizimou grande parte das populações indígenas no final do século XVII, assim como pela situação financeira da Fazenda real, que percebeu o comércio de africanos como uma importante alternativa para viabilizar a reprodução do domínio militar português na região, assim como a criação da Companhia de Comércio do Maranhão, de 1682, cujo objetivo era garantir o suprimento de escravos africanos para o Estado, já que a Lei geral de liberdade indígena publicada em 1680 proibia a escravidão indígena. Em 1680, o governo português, através do Regimento das Missões já expõe a necessidade de tratar sobre a inserção de escravos negros no Estado, apesar das medidas previstas no Documento terem sido ineficientes. A ausência de registros histórico dificulta a precisão dos números de pessoas escravizadas africanas que chegaram ao Maranhão antes da ação da CGGPM, no entanto, a média ficou entre 2.600 a 3.000 pessoas.

Antes da implantação da CGGPM a principal região de origem dos escravizados para o Maranhão foi a da Senegâmbia (nove viagens pelos portos de Bissau, Cacheu e Cabo Verde). Em 1714, houve um embarque oriundo da região da Baia de Biafra, do porto de Calabar e três outras viagens da região da Baia do Benin, com embarque na Costa da Mina. No decorrer da atuação a Companhia com o tráfico transatlântico, os principais portos de embarque de africanos escravizados foram os da região da Alta Guiné.

A introdução sistemática de escravizados no estado do Grão-Pará e Maranhão foi organizada através do alvará de 7 de junho de 1755 que oficializou o exercício comercial da Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão (1755-1778) e garantiu o monopólio do tráfico de escravos africanos, assim como a venda desses cativos aos moradores que necessitavam de trabalhadores para a lida no campo e na cidade. Por meio desse processo, duas regiões africanas fizeram conexão com o Maranhão: a Costa da Guiné, através dos portos de Bissau e Cachéu (África Ocidental) e Angola (África Central).

Desses, a maior quantidade de escravizados eram oriundos de Bissau, seguido de Cachéu. Isso se processou pelo fato de que a Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão, o maior empreendimento pombalino na colônia, detinha o monopólio da área compreendida entre o Cabo Branco e o Cabo das Palmas (Cabo Verde, Bissau, Cacheu). A conexão do Maranhão com o tráfico transatlântico se processou pelo Atlântico equatorial. Através da tríade: Estado do Maranhão, Guiné e Mina.

A função da Companhia era comercializar escravizados africanos em grande escala para o território do Grão-Pará e Maranhão, com o objetivo de incrementar a economia, de modo especial, fomentar a agricultura e o comércio. Para isso, a Companhia recebeu um número significativo de privilégios, dos quais podemos destacar: o monopólio sobre o tráfico de escravos e do transporte naval de outras mercadorias para as capitanias, navios da Armada Real para fazer a segurança de seus navios de transporte, reconhecimento de que os funcionários da Companhia estavam a serviço do rei, prioridade para a passagem das suas mercadorias nas alfândegas, além do foro privilegiado para as suas demandas.

Documentos apontam que das 299 viagens com destino ao Maranhão, 72%, ocorreram no período posterior à ação da Companhia do Grão-Pará e Maranhão, 23% (cerca de 12.000 escravos chegaram ao Maranhão) durante a vigência desta e 4% anterior à Companhia.  Interessante observar que, findados os trabalhos da Companhia, o comércio de escravizados ficou a cargo de traficantes.

Entre os séculos XVIII e XIX, desembarcaram no Maranhão, povos que embarcaram nas regiões de Senegâmbia, Baia de Biafra, Baia do Benin, mas também da África Centro-Ocidental, Serra Leoa e África Oriental.  Sendo a maioria das pessoas utilizadas como mão-de-obra compulsória nas lavouras de algodão e arroz.

Os principais grupos étnicos que chegaram à ilha de São Luís foram os gejes e os iorubás, além de um grande número de outras etnias já precariamente instaladas no Maranhão. Foram esses povos, de modo especial os Fanti-Ashanti, saídos dos portos da Costa da Mina que construíram a sociedade maranhense, contribuindo, bravamente, não apenas para o desenvolvimento da economia em toda essa dinâmica, mas também construindo uma sociedade transatlântica, como afirmado por Beatriz Nascimento. Esses grupos, para além da questão econômica, deixaram traços efetivos das suas sociedades, tanto do ponto de vista da linguagem, como da religiosidade e formas de organização social, como os quilombos. É importante destacar que o que se chama de nação ou etnia, diz respeito muito mais aos locais de embarque, do que, propriamente a origem étnica e/ou espacial dos que embarcavam, afinal, havia uma imensa rota de comércio, no qual o escravo era uma das mercadorias, que atravessava toda a África Saariana.

No período entre 1779 e 1815, a economia maranhense viveu um forte impulso com o aumento da produção/exportação de arroz e algodão e consequentemente também aumentou a entrada de africanos na capitania.

Em relação ao tráfico interno, isto é, a distribuição dos escravizados no território da colônia, a Bahia e Pernambuco se destacaram como áreas re-exportadoras dessa mão-de-obra. Nesse processo, existem relatos de que mediante mal comportamento de alguns escravos na região de Pernambuco, esses eram ameaçados de serem enviados ao Maranhão, território, onde a vivência desse grupo era tido como algo muito duro em meio à atuação do que chamamos aqui de empresa escravocrata.

Desse modo, cabe dizer que as dinâmicas que ganharam o tráfico de pessoas de regiões da África para o Maranhão foi estruturado a partir da participação de pessoas e instituições, com investimentos públicos e privados, consolidando uma prática que se baseava na negação da humanidade das pessoas. A Companhia de Comércio do Grão-Pará e Maranhão funcionou como um condutor dos lucros do Estado português, assegurando definitivamente o domínio político sobre aquele território africano. Com recursos econômicos relevantes, tornou-se uma instrumento fundamental para a monarquia portuguesa, além de ter subsidiado a coroa na solução de problemas relacionados à defesa militar.

O tráfico de pessoas no período analisado foi capaz de modificar os rumos da história, unindo de maneira sangrenta, através das águas do Atlântico dois territórios que, de alguma forma, continuam mantendo laços de ancestralidade, através da manutenção de memórias e histórias que não foram capazes de serem esquecidas apesar do projeto de uma política de morte na qual estava estruturado todo o poder da empresa colonizadora e escravagista.

 

Referências

BARROSO JÚNIOR, Reinaldo dos Santos. Nas rotas do atlântico equatorial: tráfico de escravos rizicultores da Alta-Guiné para o Maranhão (1770-1800). Dissertação de mestrado. Salvador: UFBA/PPGH, 2009. Disponível em: https://ppgh.ufba.br/sites/ppgh.ufba.br/files/2_._nas_rotas_do_atlantico_equatorial_trafico_de_escravos_rizicultores_da_alta-guine_para_o_maranhao_1770-1800.pdf. Acesso em: 02 de janeiro de 2023.

CHAMBOULEYRON, Rafael. Escravos do Atlântico equatorial: tráfico negreiro para o Estado do Maranhão e Pará (século XVII e início do século XVIII). Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 26, nº 52, p. 79-114 – 2006. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbh/a/hT5MH7wqWvyKthr5CnTGdQS/abstract/?lang=pt. Acesso em: 03 de janeiro de 2023.

MBEMBE, Achille. Imaginação, poder e cosmopolitismo a partir da África. In: CARVALHO FILHO, Silvio de Almeida e NASCIMENTO, Washington Santos (orgs). Intelectuais das Áfricas. Rio de Janeiro: Pontes Editora, 2018.

MEIRELES, Mário M. História do Maranhão. São Luís: Fundação Cultural do Maranhão, 2008.

NASCIMENTO, Beatriz e GERBER, Raquel. Ôrí. Documentário. 1989.

SILVA, Maria Celeste Gomes da. Rotas negreiras e comércio de africanos para o Maranhão colonial, 1755-1800. In 6° Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil. Universidade Federal de Santa Catarina, 203. Disponível em: https://labhstc.paginas.ufsc.br/files/2013/04/Maria-Celeste-Gomes-da-Silva-texto.pdf. Acesso em 04 de janeiro de 2023.

SILVEIRA, Patrícia Kauffmann Fidalgo Cardoso da.  O tráfico de escravos para o Maranhão: súplicas, embaraços e distinções (Séculos XVII-XVIII). São Paulo: CRV, 2021.

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