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Maria Teresa Ferreira

06/12/2023

Os entraves de transformar a simbologia do mês da consciência negra em ruptura estrutural.

Chegamos ao fim de mais um mês da consciência negra, de modo geral, tivemos poucos e pequenos avanços. Em contrapartida, naturalizamos a multiplicação dos esforços de pessoas negras, militantes e lideranças do movimento negro e do movimento de mulheres negras, estudiosos e pesquisadores da temática racial para garantir a qualidade dos debates e reflexões tão comuns à época, como se fossemos resolver todas as desigualdades raciais nesse mês.

Até aí, nenhuma novidade em ver homens e mulheres, negros e negras, se rasgando em mil pedaços para cumprir uma agenda quase insana de atividades formativas e culturais no intuito de ampliar as informações para emancipar as ideias. Cruzando com essa agenda, outros acontecimentos tomaram a mídia, como a formação da bancada negra no congresso nacional, a indicação de uma mulher negra para o STF, o dia 20 de novembro reconhecido como feriado nacional e o aumento dos casos de racismo. Sim, em novembro o racismo e os racistas não tiram férias.

Depois de uma larga campanha para indicação e nomeação de uma mulher negra para o STF, inclusive com adesão internacional, o governo indicou o ministro Flávio Dino.

As implicações dessa indicação nada tem a ver com a competência do ministro, a indignação está longe de ser sobre ele. Fosse outro cargo, outra circunstância e diferentes expectativas, nome melhor seria difícil encontrar. Flavio Dino é dono de uma perspicácia singular e tem significativa trajetória no cenário da política nacional, já exerceu cargos nas três esferas de poderes da república. Ele foi juiz, deputado federal, presidente da Embratur, governador do Maranhão por duas vezes e senador, além de possuir um refinado senso de humor.

Os questionamentos sobre a nomeação de uma mulher negra para o STF – Supremo Tribunal Federal, estão ligados ao compromisso do governo Lula em desconstruir a estrutura de dentro para fora, de modo a favorecer o processo de reparação, também, pela via institucional através da representatividade. No Brasil, nós negros somos 56% da população, o somatório de mulheres que se auto declaram negras e pardas é de 60,6 milhões, que representa 28% da população total, segundo dados do MIR – Ministério da Igualdade Racial.

Somos muitas, sem dúvida, como demonstram os números, mas, ainda assim, não o suficiente para se ver representada em um espaço tão seleto quanto o judiciário e, talvez, esse seja o motivo, a seletividade dos corpos.

O sistema judiciário é o que mais impetra violências ao povo negro. Se levarmos em consideração as leis do pós abolição, como disse Lívia Sant’Anna Vaz, mestra em Direito Público pela UFBA e promotora de Justiça do Ministério Público da Bahia em entrevista para coluna TAB do site UOL “O Brasil não teve leis segregacionistas como o regime Jim Crow, ou o apartheid na África do Sul. Mas não é preciso que a lei diga explicitamente que é contra o negro, nem que seja discriminatória, para produzir efeito muito semelhante. A neutralidade do sistema jurídico tem como foco o privilégio de determinado sujeito do Direito. ”

O sistema jurídico brasileiro carrega todo o sistema colonial escravagista no arcabouço da sua organização senão na forma da lei, no comportamento perante sua aplicação. Um exemplo clássico que podemos dizer é a raiz do encarceramento em massa, é um dos artigos do Código Criminal do Império de 1830 conhecida mais tarde como Lei da Vadiagem, a origem do fato da vadiagem, como ilícito penal, inclusive como crime, Como podemos ver:

Art. 295. Não tomar qualquer pessoa uma ocupação honesta e útil de que possa subsistir, depois de advertida pelo juiz de paz, não tendo renda suficiente. Penas – de prisão com trabalho por oito a vinte e quatro dias.

Em um país com históricos problemas de falta de trabalho, especialmente, para a população de renda baixa e pouca escolaridade, a legislação previa a punição por ociosidade de uma pessoa apta a trabalhar. Desde então, a “vadiagem” serviu, em muitos casos, como uma espécie de manto para encobrir o abuso de poder da polícia — representante do Estado — nas prisões efetuadas para averiguações.

A letra morta do Direito permanece viva!

As marcas de um sistema judiciário que teve seu ordenamento marcado pela ausência de liberdade, cidadania e representatividade para as pessoas negras, tinha nessa indicação a possibilidade de dar a sociedade subsídios que permitiriam mudar o cenário de violência que a discriminação cria para a sociedade, sobretudo, em relação as pessoas negras. Era o primeiro passo para rediscutir os parâmetros pelos quais o direito norteia-se quando se trata de pessoas negras, mas desconsideramos a governabilidade, a conjuntura do congresso nacional e, claro, o poder de barganha do Centrão, para que tal decisão pudesse nos favorecer;

Esse conjunto histórico de acontecimentos nos traz uma reflexão importante, em um governo pactuado com o capital, a acomodação dos interesses e os acordos políticos, não têm a classe trabalhadora e as maiorias minorizadas no centro das suas decisões. Guardadas as devidas proporções é, claro, entendendo um outro momento para o país, é possível reconhecer e considerar as muitas mudanças na foto do poder.

Mulheres, negras, indígenas, quilombolas e corpos dissidentes hoje são parte da estrutura governamental, o que nos possibilita retomar o diálogo e repensar como as contribuições desses corpos serão possíveis dentro de um cenário democrático, mas ainda comprometido com a classe dominante?

As questões raciais quando discutidas para efetivamente mexer na estrutura, se deparam com as contradições que envolvem um governo ligado ao capital internacional, aos bancos e ao agronegócio. O que coloca reivindicações genuínas que vão dizer a respeito, não só de reconhecimento, mas de reparação, garantia de acesso e representatividade fora do plano concreto de desenvolvimento nacional.

Diante do detrimento do lugar no STF, o dia 20 de novembro é declarado feriado nacional. É importante perceber que as conquistas da população negra do último período acontecem sempre no campo do simbólico, tanto o feriado quanto a bancada negra, reconhecem a resistência dos movimentos negros e a luta coletiva. Resgata a memória ancestral de líderes como Zumbi e Tereza de Benguela a exemplo do dia 25 de julho, Dia da mulher negra, latino, americana e caribenha. O feriado coloca no calendário nacional um fato histórico que conta sobre o povo negro numa outra perspectiva. Por fim traz para o calendário de feriados nacionais uma data fora da religiosidade.

Reverenciar a ancestralidade é fundamental para o fortalecimento das memórias coletivas, é preciso celebrar as todas as conquistas, no entanto, traze–las para o campo da materialidade é fundamental para transformar as estruturas. Essas “vitórias” materializam claramente as estratégias para manter as lutas e reivindicações, principalmente do povo negro, sob a égide da democracia liberal que nos dá falsa impressão de conquistas, confundindo nossa capacidade crítica de diferenciar rompimento para revolução de concessão para a manutenção do poder instituído.

Por fim, que o feriado em 2024 não seja transformado em mais um dia onde vemos pessoas não negras indo em direção ao litoral, enquanto pessoas negras estão no comercio informal de venda de água nas marginais. Porque o racismo, mesmo com o feriado, continua existindo.

 

Texto produzido e enviado pela escritora e psicanalista, Maria Teresa Ferreira

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