Semana passada (06 de janeiro de 2021) o mundo foi surpreendido pelos protestos nos EUA que culminaram com a invasão do Capitólio, a sede do Congresso norte-americano. Estimulada por políticos da extrema-direita e pelo próprio presidente estadunidense Donald Trump, a invasão representou um duro golpe na imagem da democracia norte-americana. O objetivo do ato era barrar a sessão que concederia a certificação de John Biden como presidente dos EUA.

Os eventos foram organizados pelo QAnon, grupo de extrema direita que acredita em teorias da conspiração de âmbito global que envolvem pedofilia e satanismo, da qual, supostamente, participam políticos, intelectuais, militantes e artistas. Entre as pautas do QAnon estão presentes ainda, a misoginia, a LGBTQIfobia, o antissemitismo e o negacionismo da ciência. Donald Trump seria o grande herói salvador do mundo nesta empreitada contra o hipotético plano secreto denominado de “estado profundo” (deep state).

O ato foi considerado por políticos e estudiosos como um violento ataque à democracia norte-americana. Em entrevista à BBC espanhola, o Professor Steven Levitsky da Universidade Harvard e coautor do livro Como as Democracias Morrem, assegurou que o 06 de janeiro expressou “tentativa de autogolpe” após “quatro anos de descrédito e deslegitimação da democracia” nos EUA.

Para além de todo o significado do que representou os ataques à democracia estadunidense, o evento de invasão do Capitólio foi carregado de forte simbologia. Foi possível verificar nas imagens disponibilizadas nos diversos meios de comunicação, a estética utilizada por vários manifestantes.

O homem da foto que viralizou na internet é de um dos integrantes mais famoso do QAnon. Ele se chama Jacob Anthony Chansley, mais conhecido como Jake Angeli e que se autodenomina Xamã do QAnon. Ele se tornou uma espécie de símbolo da invasão ao Capitólio. Na ocasião, ele compareceu ao evento com o tronco nu, rosto pintado com as cores da bandeira norte-americana, gorro de pele e chifres, carregando na mão um megafone.

Poderia ser apenas uma maneira bizarra de comparecer ao evento, se os símbolos trazidos por ele não possuíssem uma carga potencialmente violenta. A estética Viking aponta para a representação de um movimento que tem crescido nos últimos anos e que tem adeptos no Brasil: o masculinismo!

Alguém já ouviu falar? O masculinismo é um movimento violento, extremista e contraditório, baseado na supremacia do masculino sobre o feminino. De base misógina, seu principal pensador é o escritor norte-americano Jack Donovan, um dos 15 maiores influenciadores da extrema-direita no mundo.

O Masculinismo é uma teoria machista ou um novo grau de machismo que é elevado ao extremo. De acordo com a antropóloga Rosana Pinheiro-Machado, o movimento também é chamado de “tribalismo masculino”. A ideia da vestimenta tribal representa uma espécie de retorno aos primórdios da humanidade, onde não havia ainda direitos das mulheres e de outras populações, direitos humanos, acordos de paz, entre outros.

De acordo com Rosana Pinheiro-Machado, Donovan não reconhece a humanidade das mulheres. As ideias divulgadas em suas palestras atestam que os homens estão perdidos e que as mulheres estão ganhando muito espaço na sociedade e que, por isto, este é o momento da união masculina.

Assim, Donovan (2015) afirma que com as “ ‘melhorias’ sugeridas pelas mulheres, […] o Código dos Homens vira uma orientação indecifrável para se chegar a uma sucata de ideais”. Eis, o que, para ele, é um perigo para o masculino: a interferência das mulheres na sociedade. O escritor defende que o código dos homens é o código da gangue. Esta seria a “estratégia básica de sobrevivência de nossa espécie” (Donovan , 2015).

As principais ideias dos masculinistas envolvem o ódio ou repulsa às mulheres, sendo estas vistas apenas como meras reprodutoras. Eles também repudiam grupos LGBTQI+, que lutam por direitos. Também defendem a escravidão, a atuação em gangues e seguir uma natureza agressiva própria dos homens, mas que, por conta do desenvolvimento tecnológico, acabou por deixar a maioria dos homens sem poder exercer favoravelmente a sua masculinidade como ela deve ser exercida.

É a supremacia da virilidade, do masculino, inclusive, entre as contradições do grupo está o fato de que entre seus membros podem ocorrer relações sexuais, porém sem se considerarem homoafetivos. Donovan, por exemplo, é homossexual, mas repudia a chamada cultura gay.  Neste sentido, as relações sexuais exercidas entre homens nos parecem ocorrer como uma espécie de glorificação ao corpo masculino.

Além da referência aos vikings, alguns tribalistas masculinistas também promovem a estética de outros povos como romanos, espartanos ou ainda indígenas norte-americanos. O Xamã do QAnon, assim como outros manifestantes do 06 de janeiro nos EUA, representa a misoginia em sua forma mais elementar e violenta. O retorno da violência, da captura de mulheres, ao estupro, a submissão feminina e o status de meras reprodutoras, além da negação de afeto dedicada ao feminino.

Enquanto o mundo se voltava para a tentativa de golpe à democracia norte-americana, podemos afirmar que outro movimento, muito mais violento e sorrateiro se desenvolvia envolto em peles de urso, tacos de golfe, chifres e outros apetrechos: o grito pela negação da humanidade às mulheres e o repúdio aos grupos marginalizados.

Esse desencontro de si mesmo presente na narrativa de Donovan e nas manifestações estéticas do grupo que o acompanha, revela na verdade, o medo de perder a virilidade, o medo que não é desse agora vivido e experienciado, mas que assola e acompanha o ser masculino, a sua dita masculinidade. Um medo que se esconde em cada palavra que oprime o outro. Esse outro que está muitas vezes no próprio lado dele.

As masculinidades frágeis estão gritando como leões, mas no fundo são homens com medo de serem destronados de um status que foi naturalizado e que nunca foi pertencente deles, pois, a construção dessa dita masculinidade, a partir da opressão, não se estabiliza, mas vive assustada com o medo de perder esses privilégios criados.

Nesse compasso, ainda nos deparamos com necessidade de problematizar, o porquê dessa tão ovacionada insistência de colocar um padrão de masculinidade como forma de criar o medo e desvirilizar o outro e desumanizar pessoas e seus corpos.

Assim, em tempos estranhos, como esses que estamos vivendo torna-se cada vez mais latente explicitar que tais formas e performances masculinas que ganharam cena internacional devem ser combatidas, visto a própria negação que elas fazem aos diversos sentidos de ser homem e estar na condição de homem.

O mundo está tenso. São tempos difíceis. É preciso permanecer vigilante.
Muito afeto.

Autores

Valdenia Guimarães e Silva Menegon
Professora Doutora em História – UNISINOS

Jakson dos Santos Ribeiro
Professor Doutor em História Social da Amazônia – UFPA

Fontes utilizadas:

DONOVAN, Jack. O código dos homens. São Paulo: Editora Simonsen, 2015. Disponível em: https://masculinistaopressoroficial.files.wordpress.com/2017/06/jack-donovan-o-cc3b3digo-dos-homens.pdf acesso em 12 de janeiro de 2021.

PINHEIRO-MACHADO, Rosana. Pensador de extrema-direita, Jack Donovan radicaliza o machismo. In The Intercept Brasil. Disponível em https://theintercept.com/2019/05/27/jack-donovan-machos-em-crise/ acesso em 12 de janeiro de 2021.

SENRA, Ricardo. ‘Tribalismo masculino’: a seita violenta ligada ao ‘viking’ em invasão ao Congresso nos EUA. In BBC News Brasil. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-55582226 Acesso em 12 de janeiro de 2021.

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