Este ensaio faz parte de uma série que busca analisar as eleições presidenciais de 2022 no Brasil, bem como, os processos que desembocam na consolidação da equipe de transição de governo, que se iniciou ainda na primeira semana de novembro. A tarefa da análise é traçar um paralelo entre o processo eleitoral e os sujeitos (individuais e coletivos) que foram e são importantes neste momento crucial da frágil democracia brasileira.
O processo eleitoral de 2022 foi profundamente marcado pelo uso indiscriminado de notícias falsas, ataques às instituições, de modo especial, ao Supremo Tribunal Federal e ao Tribunal Superior Eleitoral, pelo suposto uso, nunca visto, do aparato do Estado em benefício de algumas candidaturas. Também ficou evidenciado, através de denúncias, o assédio eleitoral no trabalho, geralmente cometido por empregadores que utilizaram do poder sobre seus funcionários para coagi-los, através de ameaças e promessa de benefícios.
No dia da eleição do segundo turno, uma situação inusitada, amplamente denunciada pelas mídias jornalísticas do País, foi a instrumentalização da Polícia Rodoviária Federal, que realizou blitzes em territórios onde Lula tinha mais adesão, em um evidente caso de criminalização da pobreza, ao impedir eleitores de chegarem às sessões eleitorais por terem seus veículos apreendidos. De acordo com as notícias vinculadas, a maior parte das ações da PRF se deu em estados do Nordeste, o principal reduto eleitoral de Lula – hoje, presidente eleito.
Denúncias do uso do Auxílio Brasil como mecanismo de assédio eleitoral também foram feitas. Há oucos dias da eleição para o segundo turno, o repórter da Rede Globo, Caco Barcellos, flagrou uma tentativa de assédio eleitoral no município de Coronel Sapucaia no Mato Grosso do Sul. Essas e outras notícias deram conta do uso da máquina pública para beneficiar determinadas candidaturas, tanto em nível mais regional, como em termos das eleições presidenciais.
As eleições de 2022 também serviram como alerta em relação ao crescimento do aparato religioso e da utilização das crenças das pessoas nos processos eleitorais. Na minha tese de doutoramento defendida em 2020, já fazíamos um alerta acerca da existência de um apelo de lideranças religiosas ligadas às igrejas neopentecostais para que seus fiéis votem em alguém pertencente aos seus quadros ou que defendem pautas religiosas.
O processo de confessionalização da vinculação religiosa parece aproximar as candidaturas do eleitorado que possui proximidade com essas igrejas, fortalecendo as conexões baseadas na fé. Esse é um dado que tem crescido bastante nas últimas décadas na América Latina. Inclusive, o crescimento das igrejas pentecostais e sua interferência na política institucional tem sido um agravante em relação às práticas e os discursos fundamentalistas que cercaram o pleito de 2022.
A senadora Eliziane Gama do Maranhão foi bastante atacada pela sua escolha política, sendo alvo de uma Nota de Repúdio feita pelo Conselho Político da Convenção Estadual das Assembleias de Deus no Estado do Maranhão, condenando sua atuação no Senado Federal. Esse dado aponta um avanço da interferência religiosa nos assuntos de ordem política, com o uso da fé dos seus afiliados, em seguir as determinações de suas principais lideranças.
Por outro lado, percebo que nas eleições presidenciais deste ano ficou evidenciado um dado interessante. No segundo turno das eleições, foi possível perceber uma ativação muito forte do capital político de mulheres. Marina Silva, Simone Tebet, Benedita da Silva, Sônia Guajajara, Gleisi Hoffmann, Dilma Rousseff, além das figuras das duas esposas dos candidatos à presidência: Michele Bolsonaro e Janja Silva. A presença de lideranças femininas na campanha deixou em destaque, que as mulheres compõem a maioria do eleitorado brasileiro e que qualquer candidatura precisa ter uma preocupação em relação às pautas que esse público apresenta.
O retorno de Marina Silva ao grupo de Lula se tornou um momento histórico, na medida em que Marina deixou o PT em meio a acusações fortes de como o Partido havia se afastado da sua base e propostas iniciais. Do mesmo modo, pessoas ligadas ao Partido, ao longo dos anos, teceram enormes críticas à senadora. A entrada de Marina na campanha de Lula apontou a necessidade de deixar ruir antigas desavenças em prol de um projeto comum que era a manutenção da democracia e a preocupação com a pauta ambiental. A presença de Marina Silva tornou-se simbólica em todo esse processo e apresentou uma Marina combativa e sem medo de críticas.
Já Simone Tebet, se destacou na campanha como a “voz das mulheres”, ainda em campanha à presidência da república no primeiro turno, a campanha de Simone usou como slogan a frase “Uma nova esperança para o Brasil” e “Mulher vota em mulher”. A então candidata, se declarou feminista, ao afirmar que “ser feminista é lutar pelas mulheres”. Enquanto apoiadora de Lula no segundo turno, o discurso de Simone Tebet girou em torno da pauta de manutenção da democracia, não negando as divergências de pensamento com o candidato e também enfatizando a necessidade de ampliação de políticas para as mulheres.
Benedita da Silva, reeleita deputada federal pelo PT do Rio de Janeiro, representa as mulheres pretas e faveladas, cujas vidas, fortemente marcadas pela pobreza, pela necessidade de criação dos filhos em meio a violência, as empregadas domésticas, apontando para a ideia de que essas mulheres sabem fazer política e têm propostas concretas para um Brasil que tem fome.
Sônia Guajajara, a líder indígena maranhense, eleita deputada federal pelo Psol de São Paulo, que não nos deixa esquecer que os povos originários continuam sendo atacados e massacrados em um projeto de necropolítica que precisa ser barrado. Sônia nos assombra com a verdade, quem protege as florestas precisa ser protegido e escutado. A figura de Sônia Guajajara na campanha de Lula é emblemática, inclusive sendo cotada para ocupar o Ministério dos Povos Originários na nova gestão.
A presença de Gleisi Hoffmann, presidenta do PT, esteve ligada às questões de ordem burocrática e de posicionamento do Partido dos Trabalhadores diante dos acontecimentos que envolviam o nome de Lula e seu vice, Geraldo Alckmin, bem como, as agendas oficiais da campanha e todas as demandas que envolvem uma campanha presidencial. A misoginia tem sido um dos pontos mais presentes quando relacionados à figura da deputada federal reeleita pelo PT do Paraná. Sua figura em geral, muito séria e combativa, foi capaz de enfrentar notícias falsas e ser presença constante ao lado de Lula em praticamente todos os eventos da Campanha.
A ex-presidenta Dilma Rousseff, apesar de sofrer duras críticas de adversários e até de aliados, foi uma presença marcante na campanha, sendo sempre trazida por Lula como uma figura de mulher forte, honesta e injustiçada pelo processo misógino que foi o impeachment, ocorrido em 2016. Dilma se tornou, ao longo da campanha, uma figura que não se furtou em se pronunciar diante de um público que, por vezes, a agrediu sem piedade.
De modo amplo, também foi possível perceber que a vitória de Lula se deu em um amplo acordo de forças políticas divergentes, do ponto de vista das pautas, mas que se apresentaram como defensoras da frágil democracia brasileira, em um movimento que demonstrou a necessidade de barrar o avanço da extrema-direita e investir em políticas de enfrentamento à fome e a pobreza, além da retomada do crescimento econômico. Outra pauta que entrou na plataforma de Lula, no segundo turno, de maneira muito mais evidenciada, foi a proteção ao meio ambiente, o que levou lideranças internacionais e artistas a aderirem a candidatura do ex-presidente à presidente eleito.
Se tratando da vitória de Lula, impossível não dar os devidos créditos ao Movimento Negro, que, mesmo diverso, não se furtou em colocar-se como apoiador do então candidato do PT, chegando a construir uma agenda com o candidato em uma das principais favelas do País, o Complexo do Alemão, uma espécie de caminho que o PT encontrou para poder se voltar novamente para as bases. Lula deve muito da sua vitória ao povo pobre, preto, sertanejo, LGBTQIA+ e favelado, que empunhou sua coragem, ousadia e estratégias de sobrevivência, e se colocou contra a violência, o assédio e o poder de barganha dos poderosos. A unidade do Nordeste, ao se reconhecer como o grande mestre na arte de resistir ao preconceito e à xenofobia, foi combustível para fazer acontecer a eleição que mais demarcou perspectivas civilizatórias diferentes desde o processo de Redemocratização.
Nas próximas semanas, analiso como o grito de alívio e as lágrimas de esperança deram lugar à certeza de que, mudar uma peça no tabuleiro não muda as regras do jogo e, que ainda há muito o que fazer, inclusive demarcar território e reafirmar que mulheres, negros, indígenas e nordestinos merecem lugar de destaque, não apenas na equipe de transição, mas em todos os espaços deste novo governo que se inicia. A luta só reiniciou. Ao menos agora, sem medo de que podemos e devemos cobrar daqueles e daquelas que elegemos, as pautas pelas quais foram eleitos e eleitas.
Autora:
Valdenia Guimarães e Silva Menegon – Presidenta de Honra do Instituto Valdenia Menegon; Dra em História UNISINOS;