Pensar o Letramento racial como caminho para uma escola antirracista

Cida Bento (2022) explica que, no Brasil, existe um pacto narcísico da branquitude que se constitui como fenômeno que tem se perpetuado ao longo do tempo e se converte em uma espécie de “pacto de cumplicidade não verbalizado entre pessoas brancas, que visa manter seus privilégios”.

Lembrando que branquitude e brancura são coisas diferentes. De acordo com Lia Vainer (2020): “branquitude é uma construção ideológica a partir da ideia de raça que vai ter valores (tendo) o branco como superior moralmente, intelectualmente, esteticamente. Branquitude é a identidade racial branca”. Brancura diz respeito ao fato de alguém nascer com as características físicas de pessoa branca.

Ao longo da própria existência, pessoas que nascem brancas e, portanto, têm brancura, forjam para si e em si as imagens de superioridade baseada na raça: a civilização ocidental é superior às demais, sua estética é a mais bela – “padrão”, sua intelectualidade é universal, etc.

Desde o período colonial, o Brasil limitou o acesso à educação à elite branca, ao tempo em que privou a população indígena e negra das instituições de ensino, assim como de outros espaços. Evidentemente, a escravidão foi elemento que sustentou essa estrutura que deixou marcas profundas na constituição da sociedade brasileira. 

De acordo com Juarez de Paula Tadeu Xavier (2021): “Através da linguagem, você replica esse processo estrutural e reforça a superioridade de um grupo em detrimento de outro. Dessa forma, a sociedade vai moldando padrões estéticos e culturais, bem como, o próprio entendimento de cidadania”. 

Nesse sentido, o letramento racial se torna ferramenta indispensável para a formatação de uma escola antirracista. Através dele, podemos construir práticas que tenham na base, instruir toda a comunidade escolar a desconstruir formas de pensar e agir que estão enraizadas em nossa sociedade e que se assentam em bases raciais muito sólidas. O modo como nos vemos e como somos lidos socialmente tem efeitos positivos ou negativos sobre nossa existência. O letramento racial nos ajuda a reconhecer nosso lugar no mundo e perceber também as outras pessoas ou as ausências delas em determinados espaços. 

Neste momento, se você pesquisar “mulher bonita” ou “homem bonito” no google, perceberá imagens compostas por uma maioria branca. Para notar pessoas negras, você precisa ser mais “específico” e digitar “mulher negra bonita” ou “homem negro bonito”. Nesse sentido, a escritora e psicóloga Grada Kilomba coloca que existe um sujeito universal, um padrão social. O não branco é sujeito específico.

 

Não sendo nem branca, nem homem, a mulher negra exerce a função de ‘outro’ do outro”, sendo relegada a um locus de especial subalternidade. Em poucas palavras, eu, mulher negra, não sou sujeito universal. E, na atual e persistente estrutura racista e sexista do sistema de justiça brasileiro, cabe a esse sujeito universal – encarnado pelo homem branco, heterossexual e cristão – definir o meu lugar no Direito. (KILOMBA, 2012, p. 12).

 

A partir da reflexão acima, busca-se, através do Letramento racial, instigar a compreensão daquilo que não está “visível aos olhos”, por isso os questionamentos sobre o modo como sabemos da nossa história e o que sabemos dela. Portanto, é necessário um retorno ao passado para recontar e desconstruir nosso conhecimento sobre a história brasileira, do continente africano, americano e de outros povos. Como percebemos através da simbologia  africana Sankofa “Nunca é tarde para voltar ao passado e buscar lá atrás o que ficou”.   

O trato pedagógico da diversidade, sobretudo, a racial, é um direito da sociedade e um dever das instituições da educação que visa contribuir para a formação cidadã em um país democrático. Além da aplicação das Leis 10.639  (2003) e  11.645  (2008),  que tornam obrigatório o ensino da história e da cultura afro-brasileira e indígena, é fundamental valorizar a presença e a cultura não branca no corpo docente e discente, bem como, no currículo e nas práticas pedagógicas, de forma transversal, bem como na estética de quem gesta a escola.

A proposta da educação antirracista nos mostra essa possibilidade. Nela, o fortalecimento de identidades é um princípio que busca a compreensão de que não podemos homogeneizar os conteúdos escolares tomando por base apenas uma perspectiva étnica, de uma “história única”. A diversidade étnica nos currículos implica debater fenômenos históricos, políticos, econômicos e sociais do etnocentrismo e do racismo. Tratar da diversidade e da diferença implica posicionar-se contra todas as formas de dominação e segregação.

Aparecida de Jesus Ferreira, pesquisadora ferrenha nos estudos sobre Letramento Racial Crítico e Teoria Racial Crítica no Brasil, traz em um de seus artigos, os estudos propostos por Gloria Ladson-Billings, que discute a teoria racial crítica no campo da educação. Ela menciona que a Teoria Racial Crítica “[…] torna-se uma importante ferramenta intelectual e social para a desconstrução, reconstrução e construção: desconstrução das estruturas e discursos opressivos, a reconstrução da agência humana, e construção da equidade e relações de poder socialmente justas.” (1998, p. 9). Aqui, o indivíduo é personagem principal, pois ao narrar as suas próprias experiências, elas podem apresentar uma confirmação ou contra-argumentar acerca do funcionamento da sociedade. 

Saber, por exemplo, que os povos africanos já haviam construído uma longa história antes do contato com o europeu. Também é relevante saber quais etnias e de quais territórios da África foram trazidos de forma compulsória nossos ancestrais. Esses são passos relevantes para a construção da nossa própria identidade. Do mesmo modo, é importante compreender que na travessia do Atlântico, vieram muito mais que corpos: por aqui aportaram conhecimentos, ritmos, medicina, práticas religiosas, estética e tecnologias ancestrais, já nos alertava a grande dona Beatriz Nascimento. 

Explorar o uso da literatura infantojuvenil protagonizada e/ou produzida por pessoas negras nas escolas, trabalhar a localização territorial de forma mais atenciosa ao continente africano. Em uma das últimas atividades realizadas pelo Instituto Valdenia Menegon, exploramos o uso do mapa mundo como material didático para abordar sobre  as características desconhecidas de África e, também, apresentamos a história por trás das bonecas Abayomis, que são referências de África. É relevante que os estudantes tenham noção de que nossa história não inicia e nem termina com a escravidão.

Como premissa, o racismo alicerça nossa sociedade e tem ceifado vidas, de modo comum e alarmante, de homens e jovens negros, Pensar em uma educação antirracista torna a escola um mecanismo de enfrentamento de uma política de morte e alicerca a comunidade escolar com letramento racial suficiente para perceber as formas, às vezes mascaradas, como o racismo se coloca como mola propulsora das violêcias na sociedade.

Nos termos do que é estipulado no Decreto Estadual n. 37.761/ 2022, compreende-se a intolerância religiosa como:

[…] toda distinção, exclusão, restrição ou preferência, incluindo-se qualquer manifestação individual, coletiva ou institucional, de conteúdo depreciativo, baseada em religião, concepção religiosa, credo, profissão de fé, culto, práticas ou peculiaridades rituais e litúrgicas, e que provoque danos morais, materiais ou imateriais, atente contra os símbolos e valores das religiões afro-brasileiras ou seja capaz de fomentar ódio religioso ou menosprezo às religiões e seus adeptos.

 

A escola é um espaço privilegiado de formação de pessoas com espírito crítico, porém imbuídos de um sentimento de cultura de paz, capazes de conviver de forma harmoniosa com a plurirracialidade presente em nossa sociedade e que sejam preparados para vivenciar as diferenças que são características da diversidade humana. 

Desse modo, urge a execução de políticas públicas de educação alicerçada em uma Filosofia Política Afroperspectivista que tenha como referencial o letramento racial, a recuperação da memória da agência política negra e a identificação da sala de aula como espaço de formação para a igualdade e o respeito aos outros. É necessário que o mentecidio – nas palavras de Abdias do Nascimento – a lavagem cerebral pela qual passamos e que entorpece ou aniquila a capacidade de raciocínio da população negra, seja combatido.

Diante da complexa teia que reveste o tecido social no Brasil, alicerçado no racismo, urge que a educação seja um mecanismo de transformação social e isso só se consolida a partir de uma prática antirracista, que prime pelo respeito às diversidades da nossa comunidade, que valores os aspectos da cultura regional, que valorize os profissionais da educação e que tenha na figura dos estudantes o protagonismo que lhe é inerente.

Legenda:

  1. Gloria Ladson-Billings: Conhecida nos Estados Unidos como a pessoa que trouxe para o campo educacional a Teoria Racial Crítica (Critical Race Teory).
  2. Teoria Racial Crítica (Critical Race Theory – CRT3): teoria que muito tem sido utilizada nos Estados Unidos e, recentemente, na Europa, em outros continentes e no Brasil, para discutir estudos críticos de raça e racismo.
  3. Mentecídio: Conceito presente no livro “O Quilombismo” na edição de 1980, da Editora Vozes, na página 25. Já na edição de 2019 o termo mentecidio é retirado, mas a ideia aparece novamente na página 45.

 

Artigo produzido por Dra. Valdenia Menegon e Lígia Alves.

 

Referências Bibliográficas 

 

BENTO, Cida. O pacto da branquitude. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.

FERREIRA, Aparecida de Jesus. Teoria Racial Crítica e Letramento Racial Crítico: Narrativas e Contranarrativas de Identidade Racial de Professores de Línguas. Revista da ABPN. v. 6, n. 14 • jul. – out. 2014, p. 236-263. Disponível em: https://smeduquedecaxias.rj.gov.br/smeportal/wp-content/uploads/2020/07/TEORIA-RACIAL-CR%C3%8DTICA-E-LETRAMENTO-RACIAL-CR%C3%8DTICO.pdf. Acesso em 24 de março de 2023.

MARANHÃO. Decreto Estadual n. 37.761. Estabelece a Política Estadual de Proteção aos Direitos dos Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana e Afro-brasileiros. São Luís, 2022.

NASCIMENTO, Beatriz (Org). Quilombola e intelectual: possibilidades nos dias da destruição. São Paulo: Editora Filhos da África, 2018.

VAINNER, Lia. Entre o encardido, o branco e o branquíssimo: branquitude, hierarquia e poder na cidade de São Paulo. São Paulo: Veneta, 2020.

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