Por que pessoas brancas precisam de Letramento Racial?: O BBB 2023 e os reflexos da sociedade brasileira

“Uma mulher negra diz que ela é uma mulher negra, 

uma mulher branca diz que ela é uma mulher, 

um homem branco diz que é uma pessoa” 

Grada Kilomba



          Para a filósofa Grada Kilomba, foi criado um discurso sobre a existência de um sujeito “universal”, padrão social hegemônico, sendo o não branco um sujeito específico. Esse último, deve projetar-se a partir das definições estipuladas pela branquitude. A supremacia branca estipula o belo, o certo e as regras que devem ser seguidas desde que sigam seus próprios valores. Nessa construção, verificamos como a mídia tem um enorme poder em ditar a estética, os padrões de comportamento, a beleza, a linguagem e até a afetividade.

Nesse sentido, é possível utilizar o Big Brother Brasil – BBB como um mecanismo de análise da sociedade? O que a tessitura da “casa mais vigiada do Brasil” nos mostra sobre a necessidade urgente de Letramento Racial? Entra ano, sai ano e o maior reality show brasileiro, sempre provoca análises e discussões, senão as mesmas, principalmente com o destaque que as redes sociais como Instagram, Tik Tok, Twitter possibilitam. 

         Assistir o programa e analisar algumas situações é diferente de provocar o ódio e o cancelamento. É importante utilizar o programa como forma de compreender casos que se reproduzem aqui fora, portanto, trazer esses diálogos nos ajuda a repensar atitudes e contribuir para um debate útil. No texto, vamos demonstrar alguns aspectos que envolvem o Letramento Racial a partir de episódios que a edição mostrou.

O programa, muitas vezes, reflete comportamentos que são comuns às pessoas brancas em função de pessoas negras em determinados espaços, que apresentam nitidamente o estranhamento e medo daquilo que é diferente. Cida Bento (2002) cita a construção do narcisismo para falar sobre a aversão ao “outro” que é diferente de si, e sobre como esse “estranho” e “diferente” colocam em questão o dito “normal”. Esse processo mostra um tipo de problema que caracteriza frequentemente quem está no poder e tem medo de perder seus privilégios. Diminuir a prática religiosa de uma pessoa, questionar sobre a higiene do cabelo crespo, menosprezar relações com pessoas negras. O objetivo do texto é justamente apontar nestes comportamentos a falta de Letramento Racial. 

Como o maior experimento social dos últimos tempos, a arena BBB, também dita padrões. Nas últimas edições, alguns estereótipos raciais estão sempre lá representados: o agroboy (no geral branco, jeito meio bobo, ingênuo, tido como não conhecedor de temas relevantes para a sociedade, porque, supostamente, vive em uma espécie de mundo da inocência). Há também o homem branco padrão “hetero top” (nessa edição marcado pelo “belo topete”). Esse se acha o supra sumo da beleza e de saberes, colocando suas verdades como se fossem únicas.

Nessa teia, há ainda o homem branco desconstruído, camarada, gente boa, que entende de assuntos polêmicos, que faz discursos calorosos em defesa das mulheres, mas que no minuto seguinte, chama uma mulher preta de raivosa, maldosa, apenas porque essa não se curva às suas falas e exigências. O mesmo que, ao ouvir sobre o lugar da mulher preta na sociedade, invalida sua fala e existência. Segundo sua “visão”, no BBB “não cabe militância”.

Para coroar esse grupo, o homem branco, jovem, “sarado” e violento. Sua postura indica como alguns homens brancos aqui fora se sentem em relação ao seu lugar no mundo e o quanto a violência é banalizada. Esse jovem, apesar de, publicamente, manter uma relação abusiva com sua companheira, é encarado por grande parte do público que acompanha o Programa, apenas, como um garoto que precisa de novas oportunidades para aprender.

Além desses estereótipos masculinos, as últimas edições não esqueceram de inserir o homem preto “isentão”, aquele que não se mete em embates sobre a questão racial e que tende a sentir-se atraído por mulheres brancas. O preto que não se submete a esse estereótipo, taxado de mal, manipulador e que é capaz de usar da sua religião para fazer o mal para os outros. É aquele que causa medo, pavor. Não à toa, o participante Fred Nicácio, foi um dos participantes que, nesta edição, mais sofreram perseguição na Casa. Foi taxado de mal, manipulador, barraqueiro e “biscoiteiro”, além de ter sofrido racismo religioso em mais de uma ocasião.

Fred Nicácio também faz parte de um grupo social que tem sido utilizado como entretenimento no BBB, o homem negro gay. Inclusive, nas últimas edições, dois deles apertaram o botão de desistência (Lucas Penteado da Edição 2021 e Bruno Gaga da edição 2023). Na edição de 2022, quem desistiu foi Thiago Abravanel, homem branco gay.

Afora os estereótipos masculinos, tem também os estereótipos construídos para as figuras femininas. A mulher branca esteticamente modificada, mas que quer parecer natural. É aquela que carrega o estereótipo de “feminina”, “angelical”, “bonita”.  As mulheres negras também estão lá “representadas”: ou são taxadas de grossas, mal educadas, maldosas – adjetivos que não são apontados para  a mulher branca padrão, mesmo quando essa perde a calma e vá aos gritos – ou são consideradas “plantas”, as que não fazem nada, inclusive, são as preteridas nas relações amorosas e afetivas.

Toni Morrison cunhou o conceito de outremização, que grosso modo, significa que o outro é sempre o diferente e mais do que isso, é o inferior. É esse sentimento e prática de outremizar o diferente, que faz com que participantes do bbb e muitos de nós, no lado de cá, tenhamos medo da religião do outro, desconsideramos hábitos, crenças, linguagem e as histórias de outras pessoas. 

A ausência de letramento racial por pessoas brancas faz com que aquele que nasceu com característica de brancura se sinta tão relevante, que acredita que o racializado é o outro. Ao não reconhecer seus privilégios, o outremizado sempre tende a perder, porque sente raiva, porque chora, porque afirma ter uma vida diferente, por favor de suas dores. Tudo se resume a “mimimi”. Aqui, “no bbb, não é lugar de militância”. A dor do outro, o outremizado não tem importância.  

        No campo da linguística, o letramento é o momento que segue à alfabetização. Segundo a professora e escritora Magda Soares: “Letramento é o resultado da ação de ensinar ou de aprender a ler e escrever, o estado ou condição que adquire um grupo social ou um indivíduo como consequência de ter-se apropriado da escrita.” Desse modo, o letramento seria resultado ou consequência do processo de alfabetização. Isto é, após aprender a decodificar os signos, a pessoa está apta a compreender que a linguagem ao mesmo tempo que é produto, também produz uma determinada realidade. É uma relação dialética. Já o letramento racial se converte em um conjunto de práticas que nos permite a compreensão de que as relações raciais têm um papel fundamental na forma como atuamos. As perspectivas que temos sobre nossa própria vida são resultados do letramento racial. 

O letramento racial é um mecanismo necessário a todas as pessoas. Ele nos permite reconhecer quem somos, o lugar social que ocupamos, os privilégios ou não que temos a partir das nossas características físicas. O letramento racial também nos permite reconstruir processos sociais e vermos como nós lemos e como somos lidos socialmente. Reconhecer que temos uma história, mas que os outros também possuem a sua. Na verdade, é uma proposta de reeducação para desconstruir o racismo, porém necessita da colaboração e percepção de todas as raças.

A percepção de que temos histórias diferentes bate de frente com a ideia de uma estória única. Por muitos anos, a história foi contada a partir de apenas um referencial, a ocidental, a branca. Isso impossibilitou que conhecêssemos outras realidades. O Letramento Racial vem com essa perspectiva contar de outra forma a história da humanidade, a história brasileira, a história do continente africano, do continente americano e de tantos outros povos.

O conceito de Letramento Racial foi utilizado pela primeira vez pela pesquisadora afro-americana France Winddance Twine em 2003 e busca compreender como as relações são racializadas e como o racismo estabelece de forma arbitrária direitos, lugares e privilégios à população branca, e o inverso às populações não-brancas, o que dificilmente é questionado pela sociedade. 

No Brasil, a discussão foi introduzida por Lia Vainer Shuman, Juarez Tadeu de Paula Xavier e Aparecida de Jesus Ferreira. Essa última utiliza a teoria racial crítica para embasar a discussão sobre o letramento racial crítico. O conceito propõe reflexão e ação e está firmado em um conjunto de práticas, como: reconhecer a branquitude e perceber seus privilégios; compreender que o racismo está na nossa história e continua presente; entender que as práticas racistas são aprendidas; nomear de modo correto as manifestações do racismo; perceber quando o racismo surge no dia a dia; analisar como classe, gênero e heteronormatividade interferem no modo como o racismo afeta as pessoas. 

Ao longo dos dias no Programa, é possível perceber várias situações que nos fazem refletir sobre problemáticas caras à população negra. Logo no início do BBB 23, a irmã Tina (mulher negra), foi questionada sobre sua postura “metida” na Casa. Infelizmente, enquanto construção social de raça, a ideia de que mulheres pretas são duras, ríspidas e raivosas está no nosso imaginário. Mulheres pretas não são vistas como femininas. A intelectual e assistente social Carla Akotirene (2019) problematiza como a colonização trouxe imagens de controle visando perpetuar os cativeiros em nossa psique. Nesse sentido, muitas mulheres negras para serem aceitas como mucamas, tornaram-se pretas da casa. Essa imagem da mulher negra submissa, continua perpetuada no imaginário popular. 

Em outro momento, um ponto que também nos chamou atenção foi a fala do participante Cristian Vanelli (homem branco) com Bruna Griphão (mulher branca). Em uma conversa, Christian afirmou que: “eu cheguei aqui, o maior caralho de gente diferente, tipo de pessoas que lá fora, tipo, eu não aceitaria, não acharia legal…”. Essa fala reproduz em muito o que Cida Bento denomina de o pacto narcísico da branquitude, ao tempo em que relega ao outro a condição de inferiorização. 

A fala do “irmão” confinado, diz muito sobre como ao longo da própria existência, pessoas que nascem brancas e que, portanto, têm brancura, forjam para si e em si as imagens de superioridade baseada na raça: a civilização ocidental é superior às demais, sua estética é a mais bela – “padrão”, sua intelectualidade é universal, etc.

Lembrando que branquitude e brancura são coisas diferentes. De acordo com Lia Vainer: “branquitude é uma construção ideológica a partir da ideia de raça que vai ter valores (tendo) o branco como superior moralmente, intelectualmente, esteticamente. Branquitude é a identidade racial branca”. Brancura diz respeito ao fato de alguém nascer com as características físicas de pessoa branca.

A brancura também permite às pessoas serem o que elas desejarem. MC Guimê, por exemplo, apesar do seu tom de pele (branca), disse sentir-se negro por conta de não compactuar com as ideologias dissemnadas pelos brancos, “branquíssimos”, o grupo que segundo Lia Vainner, seriam os brancos ricos. Guimê seria a representação de um branco periférico que se identifica com a cultura negra e não se sente próximo aos valores da branquitude. Também nos aponta como a pessoa branca pode ser exatamente o que ela quiser, inclusive negra, se lhe for conveniente. 

O participante Fred Nicácio também foi alvo de racismo na casa. Em um dado momento, em uma conversa entre os participantes Cris, Key e Cowboy, os três falaram sobre estarem com medo das “coisas” que Fred Nicácio estava fazendo. Essas coisas nada mais eram do que as suas próprias práticas religiosas. Os três participantes insinuaram que ele estaria usando sua religião para praticar o “mal” contra eles.  Fred Nicácio é candomblecista, religião de matriz africana, e por muitos momentos na casa, o brother sofreu vários tipos de preconceitos, entre eles, o Racismo Religioso. 

O racismo religioso é um dos principais problemas enfrentados pelas comunidades de matrizes africanas no Brasil, diferentemente da intolerância religiosa. Sidnei Nogueira, intelectual e ba nos traz essa diferença em seu livro “Intolerância Religiosa”, da seguinte forma: “A intolerância religiosa possui um olhar mais individualizado e isolado sobre as ações de violências contra a liberdade religiosa de um modo geral. Inclusive, nessa compreensão, muitas vezes, a origem étnico-racial dos adeptos da religião não é um fator determinante para a violência”. No Brasil, as pessoas pretas sofrem diversas opressões. Tentar diminuir e aniquilar os sonhos, a cultura, a fé, a música e a sabedoria desses povos a todo custo.

O último exemplo que trazemos foi protagonizado por Sarah Aline em conversa com Domitila, onde ela afirmou que, quando conseguiu dinheiro suficiente para pagar a terapia, ela se sentiu privilegiada, porque através das consultas, ela compreendeu que muitos dos seus comportamentos eram oriundos do medo de crescer em um mundo branco onde ela nunca era vista e que, o que não quer ouvir em momento algum de Thadeu Smith é que, ela foi a pessoa que mais se dedicou a outras pessoas e que, por isso, ela se apagou. Segundo Sarah, ela já ouviu isso a vida inteira. Uma vivência que foi deslegitimada por Fred “Boco Rosa” (homem branco).

As passagens acima não dão conta de quantas vezes o racismo em suas variadas formas foi exposto no Programa, mas aponta de forma sucinta como o letramento racial é necessário, de modo especial, para pessoas brancas que reconhecem ou não seus privilégios. Esse conjunto de práticas deve ser explorado como uma ferramenta segura de combate ao racismo que estrutura nossas relações e que se forja cotidianamente e se reproduz de maneira rápida em nossos espaços.

Referências Bibliográficas

AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidades. Coleção Feminismos plurais. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019

KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.

MORRISON, Toni. A origem dos outros. Companhia das Letras, 2019.

SOARES, Magda Becker, (1998). Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizonte: Autêntica

VAINNER, Lia. Entre o encardido, o branco e o branquíssimo: branquitude, hierarquia e poder na cidade de São Paulo. Ventania, 2020.

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