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Fernando Salazar

28/04/2023

Ressignificação da marginalidade enquanto identidade

A cobrança da sociedade para modelar o comportamento social do sujeito que está inserido ou é oriundo de uma comunidade periférica, ocorre, em grande frequência, ao exigir um modelo de comportamento que inclui falas, estilos de roupas e, até mesmo, a cultura que é consumida e produzida por essa população. Dessa forma, utilizam termos generalizantes e pejorativos, tais como: a nomenclatura “marginal” para referenciar-se a tudo aquilo que é nascido e tem sua essência nas zonas urbanas distantes das áreas elitizadas. 

 

O dicionário da língua portuguesa, Aurélio Buarque de Holanda, refere-se ao conceito de marginal: “pessoa que vive à margem da sociedade ou como vagabundo, mendigo ou delinquente fora da lei”. Com base neste conceito, é evidente a aversão histórica da classe elitizada em relação às classes sociais baixas, intituladas zonas marginalizadas. 

 

Quando buscamos pelo contexto histórico da construção social do Brasil, entendemos que se remete a um passado marcado pela exploração dos povos Pindorâmicos – nativos da terra, como conhecemos hoje no Brasil – e dos povos que foram sequestrados do continente africano para serem escravizados por colonizadores europeus. O escritor Nego Bispo refere-se a esses povos como “afro-Pindorâmicos”, na tentativa de substituir os conceitos colocados pelo processo de colonização.

 

Durante o período escravocata no Brasil, existe um marco que tem seus reflexos até nos dias atuais dentro das classes sociais, a conhecida Lei Áurea, assinada em 1888 pela princesa Isabel, legimitando o “fim da escravidão no Brasil” da seguinte forma: “LEI Nº 3.353, DE 13 DE MAIO DE 1888. Art. 1°: É declarada extincta desde a data desta lei a escravidão no Brazil.”

 

Essa narrativa distorcida do fim da escravidão ganha enredos heroicos e utópicos até os dias de hoje, porém, a realidade é bem diferente. Uma vez que a lei sancionada finca de fato a desigualdade social no Brasil, pois não garantiu aos ” ex-escravizados” escolaridade, moradia, acesso à saúde, emprego, indenização, ou qualquer outra reparação histórica. O sociólogo brasileiro, Florestan Fernandes (1978; p. 15), explora esse aspecto no seguinte trecho: 

“A desagregação do regime escravocrata e senhorial operou-se, no Brasil, sem que se cercasse a destituição dos antigos agentes de trabalho escravo de assistência e garantias que os protegessem na transição para o sistema de trabalho livre. Os senhores foram eximidos da responsabilidade pela manutenção e segurança dos libertos sem que o Estado, a Igreja ou qualquer outra instituição assumisse encargos especiais que tivessem por objeto prepará-los para o novo regime de organização da vida e do trabalho. O liberto viu-se convertido, sumária e abruptamente, em senhor de si mesmo, tornando-se responsável por sua pessoa e por seus dependentes,embora não dispusesse de meios materiais e morais para realizar essa proeza nos quadros de uma economia competitiva.”

 

Diante desse cenário, essa população foi forçada a buscar moradias em locais inaptos à qualidade de vida, gerando o surgimento habitacional das zonas urbanas periféricas. De acordo com a definição do dicionário Michaellis, periferia remete à “Região distante do centro urbano, com pouca ou nenhuma estrutura e serviços urbanos, onde vive a população de baixa renda; perifa.” Por outro lado, a classe social elitizada fez e continua fazendo sua sustentação com um grande acúmulo de renda e concentração de riquezas, ou seja, heranças advindas do período colonial dos grandes mercadores, donos de fazenda e da classe dominante da época que foram perpassadas através de gerações. 

 

Em meio a tantos pontos negativos empregados sobre a periferia, frutos de um sistema de classe estrutural, também, é notável a riqueza intelectual e cultural desse povo. Fruto de uma constante troca de saberes e ensinamentos orgânicos que se manifestam através da oralidade, de músicas, dança, escritos, e mais um infinito leque de qualidades que formam um grande acúmulo cultural  periférico que ressignificam as características do sujeito marginal. 

 

A produção literária, artística e filosófica do que se considera marginal se faz presente a muito tempo em nossa sociedade. Já na década de 70 no período ditatorial militar, era possível ver grupos que produziam em prol de denúncias sociais contra a repressão, e que estariam interligadas entre si pelo termo marginal, Gonzaga (1981,p.149) nos traz que a produção marginal se caracterizou em três ramificações, “os marginais de editoração; os marginais de linguagem e os marginais por apresentarem a fala daqueles setores excluídos dos benefícios do sistema.” 

 

O movimento marginal conta em sua trajetória com a participação de “Ferréz” ou Reginaldo Ferreira, escritor e morador do Capão Redondo na Zona Sul de São Paulo, que lança sua estreia no meio literário com a obra Capão Pecado, baseada nas vivências do seu cotidiano, que posteriormente ganhou visibilidade de interesse sociológico, colocando-o como uma exceção cultural do contexto em que estava inserido. Ferrez organizou, nos anos 2000, a produção literária chamada de “literatura marginal: a cultura da periferia” que se dividiu em 3 edições, publicadas na revista “Caros Amigos”. Ela contou com o total de 48 autores, todos inseridos nas periferias e favelas do Brasil, que compuseram uma escrita de linguagem informal, com a presença de gírias, relatos pautados em críticas sociais, e exaltação da periferia como potência, mostrando que a ascensão de Ferréz, que causou interesse sociológico, era muito mais além do que algo único, e sim, a periferia como um todo, mostrando-se capaz. 

 

Na epígrafe do editorial “Manifesto de Abertura: Literatura Marginal”, Ferréz declara que: “O significado que colocamos em suas mãos hoje é nada mais do que a realização de um sonho que infelizmente não foi vivido por centenas de escritores marginalizados deste país. Ao contrário do bandeirante que avançou com as mãos sujas de sangue sobre nosso território e arrancou a fé verdadeira, doutrinando os nossos antepassados índios, e ao contrário dos senhores das casas grandes que escravizaram nossos irmãos africanos e tentaram dominar e apagar toda a cultura de um povo massacrado mas não derrotado. Uma coisa é certa, queimaram nossos documentos, mentiram sobre nossa história, mataram nossos antepassados. Outra coisa também é certa: mentirão no futuro, esconderão e queimarão tudo o que prove que um dia a periferia fez arte” (FERRÉZ, 2005, p. 10-11).

 

A reafirmação da potencialização marginal é resultado de uma enorme luta, pois a classe elitizada desenvolveu meios que impossibilita a ascensão da classe social mais baixa, porém, mesmo com as infinitas barreiras podemos ver nomes que abriram e abrem espaços para o crescimento periférico. Um dos primeiros registros da intelectualidade marginal foi em 1960 no livro “Quarto de Despejo – Diário de uma Favelada” de Carolina Maria de Jesus (1997), que retrata o cotidiano da mulher negra, mãe e pobre, moradora de uma favela de São Paulo que apresentou a vivência de quem “vive” a favela, e não só “fala sobre ela”, como as séries e novelas e telejornais de sensacionalismo apresenta,. 

 

A partir disso, é possível dizer que a literatura marginal é o gênero que dá voz aos excluídos,  colocando-os como protagonistas do meio em que estão inseridos. Na atualidade, encontramos nomes que variam entre rappers, filósofos, escritores, ativistas sociais e uma série de representantes que proporcionam relevância para o benéfico do modelo social periférico, como: Mauro Mateus (Sabotage) in memoriam, Alex Pereira (MV Bill), Leandro Roque (Emicida), Marcos Fernandes (Dexter), a filósofa Sueli Carneiro, Mariele Franco, Genival Oliveira (GOG), o jovem filósofo Vinicius Santana (Vinaum), grupos como Racionais Mc’s, Facção Central, RZO, Gíria Vermelha e mais uma infinita lista de pensadores que fazem da literatura marginal uma Identidade. 

 

Dentre esses nomes, abre-se destaque para os que estão inseridos de forma direta no gênero musical rap (Sabotage, MB Bill, Emicida, Dexter, GOG, Racionais Mc’s, RZO, Facção Central e Gíria Vermelha), pois é um gênero  responsável por ser utilizado como meio de denúncias diante das injustiças cometidas dentro da periferia, e também, como incentivo e conscientização para que a população da favela ou periferia contrariem a perspectiva da fome, pobreza, criminalidade, evasão escolar, consumo de drogas e um vasto composto de “poluição social” que é despejado sobre as comunidades afastadas dos centros urbanos. 

 

A dimensão em que o Rap se encontra hoje em dia é de tamanho inimaginável, porém, dois nomes em específico desse meio ganham bastante notoriedade, Mauro Mateus (Sabotage)  e o grupo Racionais Mc’s, composto por Paulo Soares Pereira (Mano Brown), Paulo Eduardo Salvador (Ice Blue), Edvaldo Pereira Alves (Edi Rock) e Kleber Geraldo Lelis Simões (Kl Jay), ambos eternizados nas periferias do Brasil por levantarem a autoestima e tornar visível o povo preto, pobre e periférico. 

 

Sabotage traz em uma de suas músicas a importância política do rap, na parte introdutória da faixa “País da fome Pt 2” o rapper diz: “vários manos chega na quebrada, troca uma ideia e vê que o barato é outro, o rap é uma arma pra periferia”

 

A ascensão de Sabotage, por meio do rap, explica perfeitamente o que ele diz nessa parte da faixa, pois o rap o tirou do tráfico de drogas, o concedeu visibilidade através da música e também o colocou na história do cinema brasileiro com sua participação no filme Carandiru de Drauzio Varela. Tornando-se um dos maiores símbolos da revolução periférica em sua total essência, usava suas letras para denunciar as precariedades da favela, expor a violência sem filtro, relatar abuso policial, denúncias de racismo e críticas ao Estado. 

 

Em um contexto parecido ao de Sabotage, nasce em 1988 o grupo conhecido como Racionais Mc’s, que narrou em diversas letras de músicas o cotidiano periférico em seus inúmeros álbuns, tendo maior destaque o álbum “Sobrevivendo no inferno”, considerado por muitos a obra mais importante do grupo, que colocou a literatura marginal periférica em todas as camadas sociais, até mesmo entre os playsboys. Essa grande visibilidade deu ao Racionais através da música Diário de um detendo o prêmio de Melhor Grupo de Rap e Escolha de Audiência no Vídeo Music Brasil, pela MTV em 1998. 

 

Um outro fator importantíssimo que favoreceu o protagonismo da camada periférica através da literatura marginal, foi a inclusão do álbum Sobrevivendo no inferno como leitura obrigatória do vestibular da Universidade de Campinas (Unicamp), mudando a concepção dos estereótipos negativos impostos sobre os bairros, favelas, ou comunidades. 

 

Dentre as produções do grupo Racionais Mc’s, a constância da crítica social é bem perceptível, como na faixa “Mágico de Oz”: 

 

 Se diz que moleque de rua rouba

O governo, a polícia, no Brasil quem não rouba?

Ele só não tem diploma pra roubar

Ele não esconde atrás de uma farda suja

É tudo uma questão de reflexão, irmão

 

É uma questão de pensar

A polícia sempre dá o mau exemplo

Lava a minha rua de sangue, leva o ódio pra dentro

Pra dentro de cada canto da cidade

Pra cima dos quatro extremos da simplicidade. 

 

Uma outra faixa de grande relevância do grupo intitulada por “A vida é um desafio”, apresenta a seguinte crítica: 

 

“Sempre fui sonhador, é isso que me mantém vivo

Quando pivete, meu sonho era ser jogador de futebol

Vai vendo!

Mas o sistema limita nossa vida de tal forma

E tive que fazer minha escolha, sonhar ou sobreviver

Os anos se passaram e eu fui me esquivando do círculo vicioso

Porém o capitalismo me obrigou a ser bem sucedido

Acredito que o sonho de todo pobre, é ser rico

Em busca do meu sonho de consumo

Procurei dar uma solução rápida e fácil pros meus problemas

O crime

Mas é um dinheiro amaldiçoado

Quanto mais eu ganhava, mais eu gastava

Logo fui cobrado pela lei da natureza

Vish, catorze anos de reclusão

O barato é louco, ó”

 

” É necessário sempre acreditar que o sonho é possível

Que o céu é o limite e você, truta, é imbatível

Que o tempo ruim vai passar, é só uma fase

Que o sofrimento alimenta mais a sua coragem

Que a sua família precisa de você

Lado a lado se ganhar pra te apoiar se perder

Falo do amor entre homem, filho e mulher

A única verdade universal que mantém a fé”

 

Outro marco importante na carreira do Racionais Mc ‘s, é a história do grupo relatada em forma de série através do serviço de streaming Netflix, reflexo disso é a retirada do anonimato que sempre foi colocado sobre as comunidades pobres do Brasil. 

 

Com base nisso, a literatura marginal periférica é uma identidade em ascensão que vem possibilitando a mudança de cotidianos sem perspectivas, em centros urbanos de grande potências, seguindo a estética orgânica da periferia que se organiza sem precisar de ressignificações que mudem sua essência para se encaixar no meio elitizado. As gírias, roupas, danças, músicas e a autenticidade que é única do povo periférico, estão sendo inseridas em todos os âmbitos, sem filtros que invisibiliza suas raízes, mostrando a potencialidade existente nesse meio, como é o caso de Layne Gabriele, graduanda em Letras (UNICAMP), apresenta em suas produções a importância de reafirmar-se enquanto pessoa periférica.

 

O rapper Mano Brown enfatiza na música “Negro drama” que você pode sair do gueto, mas o gueto nunca vai sair de você, por onde quer que vá, as pessoas vão te olhar como periférico por conta de suas origens. Dessa forma, é impossível desassociar a ascensão do sujeito periférico do conceito de literatura marginal periférica. A periferia é de fato uma identidade e um ato político que vive e sobrevive em meio a tantas tentativas de exclusão e consegue destacar-se, segue formulando ideias, opiniões, artes e criando personagens que mudam, não só a estrutura de sua realidade, como também, de várias outras, inspirando os seus iguais. O intelectualismo periférico existe e não é uma realidade distante, basta olharmos à nossa volta para percebermos a riqueza que é produzida por cada pessoa “comum”.

 

Artigo produzido e enviado por Fernando Salazar – graduando de Psicologia (UNIFacema) e diretor do Instituto Valdenia Menegon

REFERÊNCIAS

 

Brasil. Lei n°3.353, de 13 de Maio de 1888. Dispõe sobre a declaração da extinção da escravidão no Brasil. Brasília, DF. Diário Oficial da União, 1888.

 

FERNANDES, Florestan. A Integração do Negro na Sociedade de Classes. São 

Paulo: Ática, 1978. Volume 1; Volume 2.

 

FERRÉZ. Literatura Marginal: talentos da escrita periférica. São Paulo: Agir, 2005. 

132 p.

 

GONZAGA, Sérgius. Literatura marginal. In FERREIRA, João Francisco (Org.). Crítica 

literária em nossos dias e literatura marginal. Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 1981.

 

PORFÍRIO, Iago & OLIVEIRA, Lucas Timoteo de. 2021. “Antonio Bispo dos Santos”. In: Enciclopédia de Antropologia. São Paulo: Universidade de São Paulo, Departamento de Antropologia. Disponível em: <https://ea.fflch.usp.br/autor/antonio-bispo-dos-santos>. Acesso em: 27/04/2023

Racionais Mc’s. A vida é um desafio. Racionais TV. YouTube, 2017, disponível em https://youtu.be/Wb3rvC6z5ao. Acesso em: 23/04/2023

 

Racionais Mc’s. Mágico Oz. Racionais TV. YouTube, 2017, disponível em https://youtu.be/5OOwtCcN74Y. Acesso em: 23/04/2023.

 

Racionais Mc’s. Negro Drama. Racionais TV. YouTube 2017, disponível https://youtu.be/u4lcUooNNLY. Acesso em: 23/04/2023


Sabotage. País da fome II. YouTube, 2002. Disponível em https://youtu.be/eJur94sSrLl. Acesso em: 23/04/2023

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