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Arthur Balbani

14/04/2023

Racismo religioso e o Poder Judiciário: uma reflexão preliminar

Quando se pensa em racismo religioso, múltiplas facetas vêm à tona: sem pretensão de esgotar a temática, aponta-se a depredação de terreiros e de símbolos religiosos, a associação de Exu com o diabo da fé cristã e a reiterada utilização de expressões pela população com conotação negativa às religiões de matriz africana (o infame “chuta que é macumba”, por exemplo). Linhas e mais linhas deste texto poderiam ser gastas apenas para exemplificar situações de racismo religioso no Brasil – e uma simples pesquisa na aba de notícias do Google mostra a gravidade desta situação, muito longe de ser resolvida pelo Poder Público.

Não é necessário que se alongue muito nas diversas faces do racismo religioso: artigo anterior deste blog (https://institutovaldeniamenegon.com/o-racismo-religioso-e-suas-faces/) – que se recomenda a leitura – já tratou da temática. É incontroverso que o racismo religioso é estrutural e muito já se tratou sobre sua relação com as políticas públicas. Porém, pouco se fala de como o racismo religioso também se encontra permeado dentro da estrutura do Poder Judiciário e de como essa situação necessita igualmente de atenção: propõe-se, assim, apresentar a temática e inseri-la para o debate público, o que será retomado, certamente, em textos futuros a serem escritos para este mesmo espaço.

Há duas formas de analisar o racismo religioso na esfera Judiciária: tanto sob a ótica de como os Tribunais enfrentam a repressão aos atos discriminatórios e atentatórios à liberdade de religião dos praticantes de fés de matriz africana (especialmente o Candomblé) – uma perspectiva mais casuística – como através das nuances da estrutura destas instituições ao julgar estes casos, a revelar determinados padrões de comportamento – uma perspectiva mais institucional. 

A despeito de serem ambas igualmente relevantes, a ótica casuística ainda esbarra na escassez de leis que visem a reprimir de maneira efetiva o racismo religioso e que tenham sua aplicação respeitada pelos Tribunais. 

Sob a perspectiva penal, o art. 20 da Lei n° 7.716/89, na redação vigente até o início deste ano, previa pena de reclusão de apenas um a três anos, além de multa, para o racismo religioso; mesmo com o aumento da pena, que passou a ser de dois a cinco anos a partir da entrada em vigor da Lei n° 14.532/23, atos de injúria (ofensa à dignidade ou decoro) por motivos religiosos seguem recebendo tratamento com a pena anterior (art. 140, §3°, do Código Penal). Independentemente da pena (se de um a três anos ou de dois a cinco anos), é ela ainda irrisória se comparada a outros delitos do Código Penal brasileiro (o crime de inundação tem pena de reclusão de três a seis anos; o crime de atentado contra a segurança de serviço de utilidade pública tem pena de reclusão de um a cinco anos e o crime de falsificação de vale postal tem pena de reclusão de dois a oito anos – todos citados apenas a título de exemplo).

Sob a perspectiva civil, atos de racismo religioso são passíveis de indenização com base no art. 927 do Código Civil – afinal, trata-se de ato ilícito (ou seja, contrário à lei) que gera dano a outrem, tendo, no caso, natureza moral (caso o ato se limite a injúria) ou material (caso transborde para prejuízos patrimoniais), sendo admissível a cumulação entre as duas espécies. Aplicam-se aos atos de racismo religioso, na esfera cível, o mesmo regramento de outros pleitos indenizatórios: é necessário que a vítima demonstre a existência de um ato ilícito, a ocorrência de dano (dispensável no caso de dano moral, pois se presume o dano oriundo do ato racista), a comprovação de nexo de causalidade entre ato ilícito e dano (ou seja, a demonstração que o dano adveio do ato racista) e a intenção de provocar o dano (também presumida na hipótese de dano moral por ato racista). 

Na esfera cível, o problema está no subjetivismo da aferição daquilo que é ou não é um ato configurador de racismo religioso na esfera moral – os Tribunais, não raramente, negam a ocorrência deste ato ilícito invocando a tese de que o ato racista não passou de mal-entendido ou de ato sem a intenção de provocar qualquer ofensa, ainda que tal entendimento esteja progressivamente sendo revisto pelos Magistrados (v.g. Agravo de Instrumento n° 2147465-47.2021.8.26.0000, Rel. Des. Alfredo Attié, 27ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo e Apelação Cível n° 1050987-63.2020.8.26.0053, Rel. Des. Maria Fernanda de Toledo Rodovalho, 2ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo).

A esfera institucional, por outro lado, é muito mais interessante enquanto objeto de estudo. O ponto de partida desta análise, a bem da verdade, já se deu no parágrafo anterior deste texto, quando apontada a clássica postura refratária das Cortes em apreciar de maneira detida os casos de racismo religioso, dando a eles o tratamento que seria necessário, e diferenciando-o das regras gerais dos demais casos indenizatórios.

Como apontado por Joelma Bonfim, a superação do racismo religioso institucional nos Tribunais se iniciou de maneira mais concreta no início do século XXI, no paradigmático julgamento que levou ao reconhecimento da validade dos casamentos realizados em terreiros de religiões de matriz africana (Apelação Cível n° 700.03.296-55/5, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul) – acórdão este datado do ano de 2002. Posteriormente, em 2019, coube ao Supremo Tribunal Federal reconhecer a constitucionalidade de legislação que entenda cabível o sacrifício de animais em rituais religiosos sem a configuração do crime de maus tratos (RE 494.601).

Nota-se a demora de quase quinze anos, a contar da Constituição de 1988, para que um Tribunal reconhecesse, pela primeira vez, válido qualquer casamento realizado nos ditames das fés de matriz africana; e a demora de mais de trinta anos para que se dirimisse a controvérsia sobre a plena legalidade do sacrifício de animais nas práticas religiosas. Vitórias em batalhas, porém, que não representam a vitória na guerra: neste meio tempo, o Supremo Tribunal Federal também reconheceu a legalidade do ensino religioso confessional nas escolas públicas – sendo certo que, na totalidade dos casos em que se professa a religião desta forma, a fé é a cristã e, não raramente, o espaço utilizado para ministração da fé se torne espaço de ataques às religiões de matriz africana (as notícias são diversas – a título de exemplo, destaca-se: https://educacao.uol.com.br/noticias/2021/12/20/rj-escola-sofre-ataques-de-intolerancia-religiosa-apos-post-de-vereador.htm).

Demora acima do considerado plausível também foi constatada no julgamento da ação civil pública movida pelo Ministério Público Federal contra a Rede Record e que foi concluída – com a condenação da rede de televisão a emissão de direito de resposta aos representantes de religiões de matriz africana – apenas quinze anos depois de seu ajuizamento. O desfecho pode ter sido positivo, mas é incontroverso que se manteve a impunidade da rede de televisão, após ter ostensivamente praticado atos de racismo religioso, por uma década e meia – o que é completamente fora da curva dos Tribunais, consoante dados do Justiça em Números, do Conselho Nacional de Justiça – que apontou que, em 2019 (ano de conclusão do julgamento), o tempo médio de duração de um processo de mesma natureza era de três anos.

A liberdade religiosa e a profissão de fé não podem ser invocadas como argumento a legitimar ataques e o desrespeito a religiões de matriz distinta daquela do agressor. Tampouco devem servir como base aos órgãos julgadores para que legitimam, ainda que em caráter excepcional, traços distintivos a uma fé em detrimento das demais. Entretanto, isto ainda ocorre, mas de maneira velada: a Constituição e o Código Civil (seja o de 1916, seja o de 2002) nunca vedaram os atos matrimoniais praticados dentro de terreiros, mas o Poder Judiciário não os reconheceu como válidos; o reconhecimento das associações religiosas para fins civis e tributários, em que pese observar o mesmo procedimento para as demais associações civis, enfrenta diversas burocracias registrais que não se verificam nos demais casos.

Precisamos, mais do que nunca, analisar atentamente como os Tribunais irão julgar novos casos atinentes ao racismo religioso, seja na natureza cível ou na natureza penal. Ao mesmo tempo, também nos cabe estudar a postura destas Cortes nos últimos anos, para evitar que o advento de legislações mais rígidas contra atos racistas se torne letra morta no nosso ordenamento jurídico.

 

Texto produzido e enviado por Arthur Balbani 

 

Bibliografia

BOMFIM, Joelma Boaventura da Silva. Casamento realizado em terreiro de Candomblé. Revista Opará – Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso (BA), v. 2, jun./dez. 2013. pp. 171-183.

BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Anuário Justiça em Números. Brasília: CNJ, 2019.

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