“Quem desencantar lençóis, vai abaixo o Maranhão”.
Esta produção nasce a partir da inquietação ao notar que, mesmo com diversas comunidades religiosas de origem africana e indigena no Brasil que precisam ser reconhecidas, protegidas e incluídas nas discussões, as pesquisas com maior visibilidade relacionadas às religiões de matrizes africanas no país resumem-se apenas ao Candomblé e a Umbanda. As manifestações são múltiplas e existe um único elo entre todas: a África. É necessário considerar as regionalidades, as características de um território e as possibilidades que se apresentam dentro dele. Ao reconhecer essa invisibilidade em que estão condicionados os cultos emergentes desses territórios, é fundamental retornar ao passado e buscar como se construiu e como tem se contado esse lado da história. Por isso, neste texto, em alguns momentos, cito as vivências que eu experimentei sendo pessoa “brincante de terecô”.
O Maranhão é um estado localizado no nordeste brasileiro, com extensa faixa litorânea que desenvolveu fortes ligações com o outro lado do oceano Atlântico, por meio do tráfico negreiro. Um Brasil invadido por colonizadores franceses, holandeses e dominado por portugueses. No século XVIII, desembarcavam nos portos, africanas e africanos, sequestrados de várias regiões do continente, para trabalho escravo. Com o objetivo de explorar a mão-de-obra, o Maranhão recebeu povos etnico-linguísticos bantus e nagôs que vinham, em maioria, das regiões da África Ocidental e Central. Esse processo impactou de uma maneira que transcende várias dimensões, pois “esses grupos, para além da questão econômica, deixaram traços efetivos das suas sociedades, tanto do ponto de vista da linguagem, como da religiosidade e formas de organização social, como os quilombos” (Menegon, 2023).
Na estruturação da sociedade maranhense, os aspectos socioeconômicos e culturais que constituem a identidade do estado instituíram-se a partir da interação de africanos e indígenas de diferentes etnias. Da mesma forma, apesar da imposição do catolicismo pelos jesuítas, foi dessa relação de integração de povos distintos que surgiram as manifestações religiosas afro-maranhenses. A primeira a ser notada foi o Tambor de Mina, segundo as análises, originou-se com a Casa das Minas, a partir da chegada de africanos e africanas de origem daomeana. A palavra “mina” teria ligação com a Costa do Ouro, região localizada na África Ocidental que com o domínio dos portugueses foi nomeada Forte de São Jorge da Mina, tornando-se local onde as pessoas escravizadas eram comercializadas e sequestradas para o Brasil e outros territórios. A Casa das Minas, primeiro terreiro a se ter registro em São Luís, foi fundada por uma africana e teve sua continuidade na liderança de mulheres. O culto, nessa religião, é direcionado aos voduns, que são as divindades essenciais, mas também há presença dos caboclos, gentis e muitos encantados.
Embora algumas simbologias dessa religião possuam características do catolicismo, segundo Ferreti (2012), estudiosos da temática, que já estiveram no Maranhão e presenciaram o Tambor de Mina da Casa das Minas, consideram uma das “casas de origem africana mais ortodoxa ou “puras”, comparando-a com os poucos candomblés quetos da Bahia” (p.15), além disso, afirma que “[…] a Casa das Minas organizou-se em torno da liderança feminina, a partir de modelos de irmandades religiosas e de sociedades secretas (p. 16). Atualmente, apesar de haver um número significativo de homens na liderança de terreiros no Maranhão, ainda assim, os cultos de matrizes africanas nesses territórios são resultado da resistência de mulheres, das mães, filhas e netas negras. Além do tambor de mina, o Terecô estendeu-se por todo o Maranhão e tem grandes números de adeptos.
É comum escutar das pessoas, que são adeptas ao Terecô, a seguinte frase: “o Terecô é um mistério”. Logo digo que, o intuito desse texto não é trivializar os aspectos que tornam esta religião singular, nem avançar no limite daquilo que é reservado apenas aos iniciados, mas sim, contribuir no resgate e valorização da história do povo negro no Maranhão, pois “parto do princípio de que os símbolos destas tradições são revitalizantes, podendo criar outras possibilidadesde leitura de sua história, em que os protagonistas sejam os próprios integrantes das comunidades” (Alcantara, 2015, p.16).
De maneira breve, pode-se definir o Terecô como uma religião afro-brasileira, que nasce na comunidade Santo Antônio dos Pretos, no município de Codó-MA, estendendo-se por toda região dos cocais e estados vizinhos, como o Piauí e o Pará. O culto surgiu na zona rural, onde havia mata fechada, por isto ficou conhecido também como Tambor da Mata . O terecô era uma prática proibida e duramente perseguida pelos aparelhos do estado. Os mais velhos relatam “batidas policiais”, muitos momentos em que oficiais de justiça tentavam impedir a brincadeira de terecô. A religião é composta por ritualísticas africanas, indígenas e do catolicismo. Os cultuados são encantados, guias, orixás e santos. Conforme Centriny, essa pode ser considerada a religião afro-maranhense mais antiga, e ainda aponta que a palavra Terekô “vem dos Bantus deverbal de telelo, teêleko ou telesso, que significa abençoar, celebrar, comemorar através de tambores” (Centriny, p. 27)
É habitual denominar as casas de religiões de matrizes africanas de “terreiros”, já as casas de Terecô são chamadas de tendas. Roupas coloridas, saias rodadas e batidas de tambor num ritmo singular, que permite qualquer pessoa identificar quando está acontecendo. Há rezas, orações e cânticos, são entoados e chamados de “doutrinas”, onde é possível observar um vocabulário rico em palavras de línguas africanas (iorubá, bantu). Toda doutrina conta uma história, do encantado ou da religião. As fontes orais são as maiores detentoras de conhecimento da constituição do Terecô, é na oralidade que o Terecô é destrinchado, não nesta escrita ou em qualquer outro livro que será explicado em sua essência, mas, sim, através daquilo que sai da boca dos mais velhos e dos espíritos encantados da religião. Na realização do Terecô, também, é comum no dia-a-dia das casas e no ato do acontecimento, observar particularidades que contam a história da religião, uma história de resistência estratégica contra a concretização da completa europeização cultural brasileira, tanto no aspecto religioso quanto na organização social. Por constituir e expressar em suas manifestações, características mais próximas daqueles que atravessaram o Oceano Atlântico na condição de escravizados, esta religião foi alvo de intensas perseguições pela sociedade e pelo Estado, como pode-se observar através de fontes orais ao cantarem:
“Tenente Vitorino é homem muito malino, quer acabar com Terecô com cipó de tamarindo”
A partir desses versos compreendemos que, o Terecô por ser uma religião nascida e mantida por corpos negros descentes de africanos, é um movimento politico e estratégico de resistencia, uma vez que “os terecozeiros garantem, nas miudezas do cotidiano compartilhadas com os encantados, contar e mover o mundo em um sentido distinto e original, alicerçado na compreensão de que suas práticas há anos vêm vencendo tentativas de esvaziamento e aprisionamento” (Zamis, Lima, Ahlert, 2023). O Terecô sofre perseguições – que podemos hoje reconhecer como racismo religioso – desde o seu principio, fato este que o levou a constituir-se como é, a herança do passado difícil pode ser notado na localização das tendas, no horário dos festejos e na reação de medo que as pessoas têm ao serem identificadas como “macumbeiro(a)’’. Um outro verso cantado, demonstra como as afro religiosidades maranhenses tem lidado com sincretismo e quais estratégias de resistência utilizaram para manter vivo o culto dos ancestrais, quando diz:
“debaixo de cada santo, tem um encantado, tem”. (mãe Jô)
E quem é o encantado? O encantado é uma entidade espiritual, que viveu, mas não morreu. O encantado não é angelical e distante de nós humanos, não é inimaginável, nem impalpável. Não se pode pensar o encantado em instância sacralizada, pois ele está ao alcance humano, canta, dança, come e bebe. Se enfurece e também ama. Esse é um dos pontos que diferenciam o Terecô: o encantado/guia é cultuado, ou melhor dizendo, é “zelado”, entretanto, não é sacralizado. Ao tempo em que a pessoa cuida do encantado, é cuidada(o) também por ele(a), pois essa relação funciona dentro de uma filosofia de “trocas justas”. O encantado muda o status da pessoa que brinca/baia terecô, e essa alteração incide na identidade do(a) adepto/adepta, por exemplo, uma senhora que antes era conhecida apenas por Maria, ao ser brinquedo de um encantado, é muitas vezes ligada ao nome dele ou dela, assim tornado-se Maria de Tereza Légua (ou qualquer outro nome de entidade espiritual).
Ao ter encantado, ninguém está mais sozinho, porque o encantado vive onde há vida, na coletividade, onde todos estão é onde ele deseja também estar. Nascer no encantado é, portanto, entender que temos uma conexão com o todo e a natureza, já que a cosmologia nos ensina que a pertença à comunidade se faz a partir do contato com o meio ambiente. O que é repudiado por aqueles que não vivem a encantaria, é a possibilidade de cantar, dançar e brincar em meio ao cotidiano desafiador. O ser encantado, que muitas vezes, em seu brincante passa uma noite baiando terecô até ao amanhecer, tem um relato de sofrimento que compõe a sua identidade também, este sofrimento terreno, finda-se quando ele é transladado para dimensão encantada e encanta-se. Outros encantados relatam nunca terem habitado esta dimensão, porém ainda possuem a habilidade de acolher os que sofrem a realidade da existência e auxiliá-los nas suas dificuldades.
Hampaté Bâ, em A Tradição Viva, defende que a ruptura total das nossas raízes só pode ser impedida através daqueles que guardam as palavras e as transmitem em sua essência. “Aquilo que se aprende na escola ocidental, por mais útil que seja, nem sempre é vivido, enquanto o conhecimento herdado da tradição oral encarna-se na totalidade do ser” (Hampaté Bâ, p. 189). Em algumas sociedades tradicionais africanas, a palavra é mais valiosa que um documento. Aquilo que é escutado da boca de uma avó/mãe/pai, de um mestre, de um mais velho é herança ancestral. As tendas, assim como qualquer outra instituição na sociedade, passam por transformações ou são afetadas por elas. Nessas circunstâncias, muitos fundamentos se perdem e manter tradições, preservar legados ancestrais é um desafio. O compromisso em transmitir aos mais novos a tradição é um ofício que muitas mães de santo desempenham muito bem.
É impossível não destacar aqui a Tenda Espirita de Umbanda Nossa Senhora da Conceição, localizada na cidade de Caxias e liderada pela matriarca Lidia Alves da Silva, no auge de seus 85 anos e com mais de 50 anos dedicados à espiritualidade. A importância do trabalho desenvolvido ao longo desses anos, pela tenda e pela mãe de santo, impactou positivamente na sociedade caxiense. Nesse espaço, sob matrigestão de uma mulher negra, estão homens, mulheres, crianças, pessoas LGBTQIAPN+ e muita diversidade confluindo. Observa-se o resgate e a incorporação de valores da vida em comunidade, que é habitual dos povos africanos e indígenas, onde esta mãe acolhe, trata de males físicos e espirituais, alimenta aos que têm fome e, assim, tem possibilitado novamente a inserção de diversas pessoas nos seios familiares e na vida social, muitas vezes, cumprindo funções que o poder público deveria assumir, mas foi omisso.
Ao pensar em uma mulher negra, que nem sequer foi letrada por via da educação institucional, interpretamos que essa existência, assim como outras que erguem comunidades, “tecem uma esteira de saberes que forjam um assentamento, comum nos processos de ressignificação do ser, suas invenções de territorialidades, saberes e identidades. Essas experiências buscam reconstituir – a partir de um imaginário em África – os elos de pertencimento alterado a partir do trânsito contínuo e da impossibilidade de retorno”(Rufino, p.42), é potente reconhecer que se não podemos retornar a terra dos ancestrais, temos a força criativa(axé) para recriar, configurar no tempo presente algo em que sejam lembrados e honrados. Nesses espaços que as identidades negras são construídas e fortalecidas, é na noção de comunidade e pertencimento que a consciência racial é alcançada.
Enquanto filha de santo, nascida no encantado, brincante de terecô e pesquisadora, é possível afirmar que, por meio da encantaria maranhense, comunidades inteiras se estruturam e se movimentam até os dias atuais. Não só ao que se limita a espiritualidade, mas em tudo que diz respeito à formação sócio histórica e cultural destes territórios, da capital ao interior, a afro religiosidade é um componente fundamental da sociedade. O Terecô não está somente na roupa que se veste, nos canticos e danças, nem fica dentro da tenda quando as portas são fechadas, a encantaria está em cada experiência da vida, em todos os espaços e mediando todas as relações. O estado encantado que o terecô nos mantém é uma alternativa para viver com dignidade e em movimento, apesar das opressões que tentam nos paralisar.
Artigo produzido e enviado por Quezia Dourado – Graduanda em Serviço Social. Presidenta do Instituto Valdenia Menegon (IVM). Terecozeira. Ativista do movimento de mulheres de terreiros. Pesquisa temáticas relacionadas à população LGBTQIAPN+, movimento negro, movimento de mulheres negras, religiosidades afro-maranhenses e educação.
REFERÊNCIAS
AHLERT, Martina. Carregado em saia de encantado: transformação e pessoa no terecô de Codó (Maranhão, Brasil) Martina Ahlert, 2016. Disponivel em https://www.academia.edu/92171140/Cidade_relic%C3%A1rio_uma_etnografia_sobre_Terec%C3%B4_precis%C3%A3o_e_Encantaria_em_Cod%C3%B3_Maranh%C3%A3o_. Acesso em: 01 de maio de 2023
ALCANTARA, Giseuda do Carmo Ananias de. Terecô: uma tradição negro-brasileira./Giseuda do Carmo Ananias de Alcantara. 2015.
BÂ, Hampaté Amadou. A tradição viva. In: História Geral da África. Editado por Joseph Ki-Zerbo. 2 ed. rev. Brasília: UNESCO, 2010.
FERRETI, Sérgio. Repensando o sincretismo. Edusp; Arché Editora, São Paulo: 280 pp. Orelha de Mundicarmo Ferretti, prefácio de Reginaldo Prandi, contracapa de João Luiz Carneiro. 2 ed. 2013.
MENEGON, Valdenia. O encontro entre a África e o Maranhão: tráfico transatlântico e os lucros para o capital. 2023. Disponível em: https://institutovaldeniamenegon.com/o-encontro-entre-a-africa-e-o-maranhao-trafico-transatlantico-e-os-lucros-para-o-capital/. Acesso em: 01 de maio de 2024
RUFINO, Luiz. Pedagogia das Encruzilhadas. Luiz Rufino (1987). 164 p. Rio de Janeiro: Morula Editorial, 2019
CENTRINY, Cícero. Terecô de Codó: uma religião a ser descoberta. São Luís: Zona V. Fotografias Ltda. , 2015.
ZALIS, Lior Zisman; LIMA, Conceição; AHLERT, Martina. Enfrentamentos e dispersões: agências, força e ação política no Terecô de Codó (MA). Acervo – Revista de Antropologia do Centro-Oeste, 10 (24): 219-236, setembro a dezembro de 2023. ISSN: 2358-5587